O rolezinho, a novidade deste Natal,
mostra que, quando a juventude pobre e negra das periferias de São Paulo ocupa
os shoppings anunciando que quer fazer parte da festa do consumo, a resposta é
a de sempre: criminalização. Mas o que estes jovens estão, de fato, “roubando”
da classe média brasileira? (entrevista com o antropólogo Alexandre barbosa
Pereira)
Eliane Brum
O Natal de 2013 ficará marcado como aquele em que o Brasil tratou
garotos pobres, a maioria deles negros, como bandidos, por terem ousado se
divertir nos shoppings onde a classe média faz as compras de fim de ano. Pelas
redes sociais, centenas, às vezes milhares de jovens, combinavam o que chamam de
“rolezinho”, em shopping próximos de suas comunidades, para “zoar, dar uns
beijos, rolar umas paqueras” ou “tumultuar, pegar geral, se divertir, sem
roubos”. No sábado, 14, dezenas entraram no Shopping Internacional de
Guarulhos, cantando refrões de funk da ostentação. Não roubaram, não
destruíram, não portavam drogas, mas, mesmo assim, 23 deles foram levados até a
delegacia, sem que nada justificasse a detenção. Neste domingo, 22, no Shopping
Interlagos, garotos foram revistados na chegada por um forte esquema policial:
segundo a imprensa, uma base móvel e quatro camburões para a revista, outras
quatro unidades da Polícia Militar, uma do GOE (Grupo de Operações Especiais) e
cinco carros de segurança particular para montar guarda. Vários jovens foram
“convidados” a se retirar do prédio, por exibirem uma aparência de funkeiros,
como dois irmãos que empurravam o pai, amputado, numa cadeira de rodas. De
novo, nenhum furto foi registrado. No sábado, 21, a polícia, chamada pela
administração do Shopping Campo Limpo, não constatou nenhum “tumulto”, mas
viaturas da Força Tática e motos da Rocam (Ronda Ostensiva com Apoio de
Motocicletas) permaneceram no estacionamento para inibir o rolezinho e
policiais entraram no shopping com armas de balas de borracha e bombas de gás.
Se não há crime, por que a juventude pobre e negra das periferias da
Grande São Paulo está sendo criminalizada?
Primeiro, por causa do passo para dentro. Os shoppings foram construídos
para mantê-los do lado de fora e, de repente, eles ousaram superar a margem e
entrar. E reivindicando algo transgressor para jovens negros e pobres, no
imaginário nacional: divertir-se fora dos limites do gueto. E desejar objetos
de consumo. Não geladeiras e TVs de tela plana, símbolos da chamada classe C ou
“nova classe média”, parcela da população que ascendeu com a ampliação de renda
no governo Lula, mas marcas de luxo, as grandes grifes internacionais, aqueles
que se pretendem exclusivas para uma elite, em geral branca.
Antes, em 7 de dezembro, cerca de 6 mil jovens haviam ocupado o
estacionamento do Shopping Metrô Itaquera, e também foram reprimidos. Vários
rolezinhos foram marcados pelas redes sociais em diferentes shoppings da região
metropolitana de São Paulo até o final de janeiro, mas, com medo da repressão,
muitos têm sido cancelados. Seus organizadores, jovens que trabalham em
serviços como o de office-boy e ajudante geral, temem perder o emprego ao serem
detidos pela polícia por estarem onde supostamente não deveriam estar – numa
lei não escrita, mas sempre cumprida no Brasil. Seguranças dos shoppings foram
orientados a monitorar qualquer jovem “suspeito” que esteja diante de uma
vitrine, mesmo que sozinho, desejando óculos da Oakley ou tênis Mizuno, dois
dos ícones dos funkeiros da ostentação. Às vésperas do Natal, o Brasil mostra a
face deformada do seu racismo. E precisa encará-la, porque racismo, sim, é
crime.
“Eita porra, que cheiro de maconha” foi o refrão cantado pelos jovens ao
entrarem no Shopping Internacional de Guarulhos. O funk é de MC Daleste, que afirma
no nome artístico a região onde nasceu e se criou, a zona leste, a mais pobre
de São Paulo, aquela que todo o verão naufraga com as chuvas, por obras que os
sucessivos governos sempre adiam, esmagando sonhos, soterrando casas, matando
adultos e crianças. Daleste morreu assassinado em julho com um tiro no peito
durante um show em Campinas – e assassinato é a primeira causa de morte dos
jovens negros e pobres no Brasil, como os que ocuparam o Shopping Internacional
de Guarulhos.
A polícia reprimiu, os lojistas fecharam as lojas, a clientela correu.
Uma das frequentadores do shopping disse a frase-símbolo à repórter Laura
Capriglione, na Folha de S. Paulo: “Tem de proibir este tipo de maloqueiro de
entrar num lugar como este”. Nos dias que se seguiram, em diferentes sites de
imprensa, leitores assim definiram os “rolezeiros” (veja entrevista abaixo):
“maloqueiros”, “bandidos”, “prostitutas” e “negros”. Negros emerge aqui como
palavra de ofensa.
As
novelas já vendiam uma vida de luxo há muito tempo, só que nelas os ricos eram
os que pertenciam ao mundo de riqueza. Nos videoclipes de funk ostentação, são
os pobres que aparecem neste mundo.”
O funk da ostentação, surgido na Baixada Santista e Região Metropolitana
de São Paulo nos últimos anos, evoca o consumo, o luxo, o dinheiro e o prazer
que tudo isso dá. Em seus clipes, os MCs aparecem com correntes e anéis de
ouro, vestidos com roupas de grife, em carros caros, cercado por mulheres com
muita bunda e pouca roupa. (Para
conhecer o funk da ostentação, assista ao documentárioaqui).
Diferentemente do núcleo duro do hip hop paulista dos ano 80 e 90, que negava o
sistema, e também do movimento de literatura periférica e marginal que, no
início dos anos 2000, defendia que, se é para consumir, que se compre as marcas
produzidas pela periferia, para a periferia, o funk da ostentação coloca os
jovens, ainda que para a maioria só pelo imaginário, em cenários até então
reservados para a juventude branca das classes média e alta. Esta, talvez, seja
a sua transgressão. Em seus clipes, os MCs têm vida de rico, com todos os
signos dos ricos. Graças ao sucesso de seu funk nas comunidades, muitos MCs
enriqueceram de fato e tiveram acesso ao mundo que celebravam.
Esta exaltação do luxo e do consumo, interpretada como adesão ao
sistema, tornou o funk da ostentação desconfortável para uma parcela dos
intelectuais brasileiros e mesmo para parte das lideranças culturais das
periferias de São Paulo. Agora, os rolezinhos – e a repressão que se seguiu a
eles – deram a esta vertente do funk uma marca de insurgência, celebrada nos
últimos dias por vozes da esquerda. Ao ocupar os shoppings, a juventude pobre e
negra das periferias não estava apenas se apropriando dos valores simbólicos,
como já fazia pelas letras do funk da ostentação, mas também dos espaços físicos,
o que marca uma diferença. E, para alguns setores da sociedade, adiciona um
conteúdo perigoso àquele que já foi chamado de “funk do bem”.
A resposta violenta da administração dos shoppings, das autoridades
públicas, da clientela e de parte da mídia demonstra que esses atores
decodificaram a entrada da juventude das periferias nos shoppings como uma
violência. Mas a violência era justamente o fato de não estarem lá para roubar,
o único lugar em que se acostumaram a enxergar jovens negros e pobres. Então,
como encaixá-los, em que lugar colocá-los? Preferiram concluir que havia a
intenção de furtar e destruir, o que era mais fácil de aceitar do que admitir
que apenas queriam se divertir nos mesmos lugares da classe média, desejando os
mesmo objetos de consumo que ela. Levaram uma parte dos rolezeiros para a
delegacia. Ainda que tivessem de soltá-los logo depois, porque nada de fato
havia para mantê-los ali, o ato já estigmatizou-os e assinalará suas vidas,
como historicamente se fez com os negros e pobres no Brasil.
Jefferson Luís, 20 anos, organizador do rolezinho do Shopping
Internacional de Guarulhos, foi detido, é alvo de inquérito policial, sua mãe
chorou e ele acabou cancelando outro rolezinho já marcado por medo de ser ainda
mais massacrado. Ajudante geral de uma empresa, economizou um mês de salário
para comprar a corrente dourada que ostenta no pescoço. Jefferson disse ao
jornal O Globo: “Não seria um protesto, seria uma resposta à opressão. Não dá
para ficar em casa trancado”.
Por esta subversão, ele não será perdoado. Os jovens negros e pobres das
periferias de São Paulo, em vez de se contentarem em trabalhar na construção
civil e em serviços subalternos das empresas de segunda a sexta, e ficar
trancados em casas sem saneamento no fim de semana, querem também se divertir.
Zoar, como dizem. A classe média até aceita que queiram pão, que queiram
geladeira, sente-se mais incomodada quando lotam os aeroportos, mas se divertir
– e nos shoppings? Mais uma frase de Jefferson Luiz: “Se eu tivesse um quarto
só pra mim hoje já seria uma ostentação”. Ele divide um cômodo na periferia de
Guarulhos com oito pessoas.
Neste Natal, os funkeiros da ostentação parecem ter virado os novos
“vândalos”, como são chamados todos os manifestantes que, nos protestos, não se
comportam dentro da etiqueta estabelecida pelas autoridades instituídas e por
parte da mídia. Nas primeiras notícias da imprensa, o rolezinho do Shopping
Internacional de Guarulhos foi tachado de “arrastão”. Mas não havia arrastão
nenhum. O antropólogo Alexandre Barbosa Pereira faz uma provocação precisa: “Se
fosse um grupo numeroso de jovens brancos de classe média, como aconteceu
várias vezes, seria interpretado como um flash mob?”.
Por que os administradores dos shoppings, polícia, parte da mídia e
clientela só conseguem enquadrar um grupo de jovens negros e pobres dentro de
um shopping como “arrastão”? Há várias respostas possíveis. Pereira propõe uma
bastante aguda: “Será que a classe média entende que os jovens estão ‘roubando’
o direito exclusivo de eles consumirem?”. Seria este o “roubo” imperdoável, que
colocou as forças de repressão na porta dos shoppings, para impedir a entrada
de garotos desarmados que queriam zoar, dar uns beijos e cobiçar seus objetos
de desejo nas vitrines?
Para nos ajudar a pensar sobre os significados do rolezinho e do funk da
ostentação, entrevisto Alexandre Barbosa Pereira nesta coluna. Professor da
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ele dedica-se a pesquisar as
manifestações culturais das periferias paulistas. Em seu mestrado, percorreu o
mundo da pichação. No doutorado, mergulhou nas escolas públicas para
compreender o que é “zoar”. Desde 2012, pesquisa o funk da ostentação. Mesmo
que os rolezinhos, pela força da repressão, se encerrem neste Natal, há muito
que precisamos compreender sobre o que dizem seus protagonistas – e sobre o que
a reação violenta contra eles diz da sociedade brasileira
El País – O rolezinho aparece ligado ao funk
da ostentação. Em que medida há, de fato, essa ligação?
Alexandre Barbosa Pereira – O funk ostentação é
uma releitura paulista do funk carioca, feita a partir da Baixada Santista e da
Região Metropolitana de São Paulo, na qual as letras passam a ter a seguinte
temática: dinheiro, grifes, carros, bebidas e mulheres. Não se fala mais
diretamente de crime, drogas ou sexo. Os funkeiros dessa vertente começaram a
produzir videoclipes inspirados na estética dos videocliples do gangsta rap
estadunidense. Mas o mais curioso desse movimento é a virada que os jovens
fazem ao mudar a pauta que, até então, era principalmente a criminalidade para
o consumo. As músicas deixam de falar de crime para falar de produtos que eles
querem consumir. Assim, ao invés de cantarem: “Rouba moto, rouba carro, bandido
não anda à pé” (Bonde Sinistro), os funkeiros da vertente ostentação cantam:
“Vida é ter um Hyundai e um hornet, dez mil para gastar, rolex, juliet.
Melhores kits, vários investimentos. Ah como é bom ser o top do momento” (MC
Danado). Deste modo, os MCs começaram a ter mais espaços para cantar em casas
noturnas e passaram a produzir videoclipes cada vez mais elaborados, com mais
de 20 milhões de acessos no YouTube, o que levou a um sucesso às margens da
mídia tradicional. Alguns MCs chegaram a alcançar grande repercussão entre um
segmento do público jovem, sem nunca ter aparecido na televisão. Vi meninas
chorando por MCs em bailes, mesmo antes de o funk ostentação alcançar o
destaque que conseguiu na grande mídia. Surgiram empresas especializadas na
produção de clipes no estilo ostentação, como a Kondzilla e a Funk TV,
claramente inspirados no gangsta rap, em que os jovens aparecem em carrões e
motos, exibindo-se com roupas, dinheiro e mulheres. Uma reflexão interessante a
se fazer é como a mídia tradicional, que antes execrava o chamado funk
proibidão, que falava de crime, drogas e sexo abertamente, agora começa a
elogiar o funk ostentação, denominando-o até como “funk do bem” e ressaltando a
trajetória econômica e social ascendente dos MCs.
Será que a classe média entende que os jovens estão
‘roubando’ o direito exclusivo de eles consumirem? Direito que, por sua vez,
vinha sendo roubado desses jovens pobres há muito tempo.”
El País – Fazendo um parêntese aqui, antes de chegar ao rolezinho, qual é o
caminho para um jovem pobre ter acesso ao consumo de luxo, segundo o olhar do
funk da ostentação? Esta virada que você mencionou...
Alexandre Barbosa Pereira – Primeiro que esse bem
de luxo não é tão de luxo assim, afinal uma garrafa de uísque a 60 ou 80 Reais
não é nenhum absurdo. É sempre possível comprar uma réplica daqueles óculos
escuros que custam mais de mil reais. Nas casas noturnas de funk que observei, este
era o preço. Pensemos num grupo de pelo menos quatro amigos dividindo o valor
da compra. Não sai tão caro brincar de ostentar. Agora, tem os carros. Estes
sim estão fora do alcance da maioria desses jovens. Mas aí há uma explicação
interessante, que Montanha, um produtor e diretor de videoclipes da Funk TV, em
Cidade Tiradentes, sabiamente me deu. Ele me disse que as novelas já vendiam
uma vida de luxo há muito tempo, só que nelas os ricos eram os que pertenciam
ao mundo de luxo. Nos videoclipes de funk ostentação, são os pobres que
aparecem como um mundo de “riqueza” ou de “luxo”, com carros, mansões, roupas
de marcas mais caras. Os jovens agora poderiam, segundo afirmou Montanha,
ver-se como parte de um mundo de prestígio, daí a grande identificação. O crime
pode ser um caminho para acessar esse mundo de luxo ou o que esses jovens
entendem por um mundo de luxo, mas não é único. Esta é a lição que muitos MCs
de funk têm tentando passar em suas falas na grande mídia. Eles de certa forma
mostram um outro caminho, que, aliás, sempre esteve presente para esses jovens
da periferia: tornar-se famoso pela música ou pelo futebol. Aliás, esses são
caminhos que aparecem como os mais possíveis para os jovens negros e pobres das
periferias do país imaginarem um futuro de sucesso. Num mundo em que há uma
forte divisão entre trabalho intelectual e manual, com a extrema valorização do
primeiro, o uso do corpo em formas lúdicas como meio de ganhar dinheiro
mostra-se como opção para uma transformação da vida. “Crime, futebol, música,
caralho, eu também não consegui fugir disso aí”, esse é o Negro Drama cantado
pelos Racionais MC’s. Os MCs de funk ostentação estão tentando dizer que é
possível construir uma vida de sucesso pela música. E o que era ficção, os
videoclipes com carros importados emprestados ou alugados, com dinheiro
cenográfico jogado para o ar, começa a tornar-se realidade. Muitos deles
começam a ganhar uma quantidade razoável de dinheiro com os shows. Acho que a
ideia da imaginação como uma força criativa apresenta-se fortemente no funk
ostentação.
Por outro lado, é preciso destacar que
masculinidades pautadas pelo desejo de possuir um automóvel ou uma motocicleta
não foram construídas pelo funk ostentação. Já existia há um tempo. Para os
meninos da periferia, possuir um bom carro, bonito e potente, é uma das metas
principais de vida. A posse do carro é, no imaginário desses jovens, mas também
da população em geral, um indicativo de sucesso econômico e social, garantindo,
consequentemente, sucesso com as mulheres.
Neste caldo cultural, o consumo é cada vez mais exaltado como espaço de
afirmação e de reconhecimento para os jovens. É, inclusive, bastante complexa a
forma como se dá a relação entre criminalidade e consumo no funk. Na virada que
produziram, parece que há o recado de que essas duas ações sociais podem
constituir dois lados de uma mesma moeda. Eles não deixam de falar do crime.
Acabam citando-o indiretamente, como nas músicas do MC Rodofilho, nas quais ele
celebra: “Ai meu deus, como é bom ser vida loka!”. O importante é entender como
o crime e o consumo são pautas constantes nas relações de sociabilidade dos
jovens da periferia. Os mais pobres também querem que ipads, iphones e
automóveis potentes façam parte de seu mundo social. Ainda preciso observar e
refletir mais sobre isso, mas acho que tanto no caso do crime, como no do
consumo temos que atentar mais para o modo como se dão as relações entre
pessoas e coisas. Fico pensando que a busca de realização apenas pelo consumo
envolve sentimentos e posturas extremas de um egoísmo hedonista e de um
profundo desprezo pelos outros humanos. As mercadorias, ou as coisas almejadas,
de certa forma têm conformado as subjetividades contemporâneas. E nessas novas
subjetividades, pautadas pelo instantâneo e o instável, parece não haver muito
espaço para a solidariedade. Há uma nova tendência na discussão antropológica
afirmando que não podemos entender as coisas apenas como representação ou
resultado do social. Precisamos pensar também em como as coisas fazem as
pessoas e mesmo o social, como as coisas, ou as mercadorias mais desejadas hoje,
motivam tanto um consumismo desenfreado, irracional e egoísta, quanto o
ingresso de jovens na criminalidade. Sempre fico espantado quando vejo as
imagens, em outros países, das pessoas correndo desesperadas para comprar um
novo lançamento de smartphone, videogame ou tablet... Mas não só isso, tais
coisas também motivam e determinam formas de estar, pensar, relacionar-se e
sentir no mundo contemporâneo.
Penso muito nisso quando parte da classe média critica o consumo desses
jovens, dizendo que apenas eles – da classe média que, supostamente, pagaria os
impostos – têm direito a consumir, ou se relacionar com certos produtos. Será
que, desse modo, a classe média entende que os jovens estão roubando o direito
exclusivo de eles consumirem ou de se relacionarem com esses objetos de
prestígio? Direito que, por sua vez, vinha sendo roubado desses jovens pobres
há muito tempo?
Essa crítica pode vir inclusive de certa classe média mais
intelectualizada e mesmo com ideias políticas progressistas, mas que acha que sabe
o que é melhor para os pobres. Aí fazem a crítica, a partir dos seus ipads e
iphones, ao que entendem como um consumo irracional dos mais pobres, que
deveriam poupar ao invés de gastar com produtos que não seriam para o nível
econômico deles. Enfim, tem aí um jogo de perde e ganha e também de busca de
satisfações individuais que envolve o roubo do direito de alguns ao consumo,
que é preciso aprofundar para entendermos melhor essas dinâmicas
contemporâneas. Todos têm o direito a consumir o que quiserem hoje? E seria
viável, hoje, todos consumirem em um alto padrão? Que implicações ambientais
teríamos? E se não é sustentável ou viável que todos consumam em tamanha
intensidade, por que incentivamos tal consumismo? Com isso, o que quero dizer é
que não se pode pensar a relação entre crime e consumo apenas entre os pobres,
mas creio que precisamos também olhar para as classes médias e altas e para os
crimes que, historicamente, têm sido cometidos contra os mais pobres e o meio
ambiente para proteger o consumo dos ricos.
El País – É neste ponto que os rolezinhos aparecem e criam uma tensão das mais
reveladoras neste Natal?
Alexandre Barbosa Pereira – Os rolezinhos nos
shoppings estão ligados diretamente a esse contexto. Não sei dizer como
surgiram efetivamente, mas me parece que despontaram por essas novas
associações que as redes sociais permitem fazer, de forma que uma brincadeira
possa virar algo sério. De repente, uma convocatória feita na internet pode
levar centenas de jovens a se encontrarem num shopping, local onde podem ter
acesso a esses bens cantados nas músicas, ainda que apenas por acesso visual.
Agora, o que é importante ressaltar é que não foram os rolezinhos nem o funk
ostentação que criaram essa relação de fascinação com consumo. Esta já existia
há muito tempo. Os Racionais, há mais de dez anos, já cantavam sobre isso, com
afirmações como: “Você disse que era bom e a favela ouviu, lá também tem
uísque, red bull, tênis nike e fuzil” ou “Fartura alegra o sofredor”
É importante perceber que os shoppings onde os
rolezinhos ocorreram estão em regiões mais periféricas. Eles não têm ido aos
templos maiores do consumo de luxo na cidade.”
El País – Algumas análises relacionam os rolezinhos a uma ação afirmativa da
juventude negra e pobre, a uma denúncia da opressão e a uma reivindicação de
participação, neste caso no mundo do consumo. Como você analisaria este
fenômeno tão novo?
Alexandre Barbosa Pereira – Não me arriscaria a
dizer que há um movimento político muito claro. Pode indiretamente
constituir-se como uma ação afirmativa da juventude negra e pobre. Talvez a
tensão que se criou com a criminalização desses jovens, durante os rolezinhos,
possa levar a algum tipo de reflexão e ação política maior, mas é difícil
prever. Em um livro intitulado Cidadania
Insurgente, (o antropólogo americano) James Holston analisa o surgimento
das periferias urbanas no Brasil, particularmente em São Paulo, apontando a
discriminação contra certas espécies de cidadãos no Brasil. Esse autor mostra
como, historicamente, as formulações de cidadania elaboradas pelos mais pobres
se deram a partir de sua ocupação dos bairros nas periferias das grandes
cidades. Noções e práticas próprias de cidadania que se produziram, ao mesmo
tempo, por meio das experiências de tornar-se proprietário, de participar de
movimentos sociais por melhorias dos bairros e de ingressar no mercado
consumidor. Primeiro se ocupou os bairros, mesmo sem estrutura mínima. Depois,
ocorreram as reivindicações pela legalização dos terrenos ocupados. E, enfim,
vieram as lutas pela chegada da energia elétrica, saneamento básico e asfalto.
Acho sempre muito interessante, em conversas com lideranças antigas dos bairros
periféricos de São Paulo, observar que elas indicam a chegada do asfalto como o
grande marco de transformação do bairro e a integração deste ao espaço urbano.
Encaro, portanto, ações como estas, dos rolezinhos, do ponto de vista
dessa “cidadania insurgente”, referindo-se a associações de cidadãos que
reivindicam um espaço para si e, assim, se contrapõem ao grande discurso
hegemônico ou, se não se dissociam do discurso hegemônico, ao menos provocam
ruídos nele. Trata-se de uma reivindicação por cidadania, participação política
e direitos que, historicamente, foi feita na marra, pelos mais pobres, muitas
vezes nas costuras entre o legal e o ilegal, e que começou com a própria
ocupação dos bairros na periferia da cidade de São Paulo, como forma de habitar
e sobreviver no mundo urbano. Essa cidadania não necessariamente se apresenta
como resistência, mas pode também querer, em muitos casos, associar-se ao
hegemônico, produzindo dissonâncias.
O que são o funk ostentação e os rolezinhos se não essa reivindicação
dos jovens mais pobres por maior participação na vida social mais ampla pelo
consumo? Estas ações culturais parecem situar-se nessa lógica, que não
necessariamente se contrapõe ao hegemônico, na medida em que tenta se afirmar
pelo consumo, mas provoca um desconforto, um ruído extremamente irritante para
aqueles que se pautam por um discurso e uma prática de segregação dos que
consideram como seus “outros”.
Há uma tendência de perceber os jovens pobres a partir
de três perspectivas: a do bandido, a da vítima e a do herói.”
El País – Como definir este desconforto? O que são os “outros” neste contexto? E
que papel estes “outros” desempenham?
Alexandre Barbosa Pereira – O desconforto em ver
pobres ocupando um lugar em que não deveriam estar, como o de consumidores de
certos produtos que deveriam ser mais exclusivos. É um tipo de espanto, que
indaga: “Como eles, que não têm dinheiro, querem consumir produtos que não são
para a posição social e econômica deles?”. Estes “outros” são os considerados
“subalternos”. Podem ser funkeiros, pobres e pardos da periferia, mas podem ser
também as empregadas domésticas, os motoboys, os pichadores, entre outros
“outros”, que muitas vezes são utilizados como bode expiatório das frustrações
de uma parcela considerável da classe média.
Os rolezinhos não são protestos contra o shopping
ou o consumo, mas afirmações de: “Queremos estar no mundo do consumo, nos
templos do consumo”. Entretanto, por serem jovens pobres de bairros periféricos,
negros e pardos em sua maioria, e que ouvem um gênero musical considerado
marginal, eles passam a ser vistos e classificados pela maioria dos segmentos
da sociedade como bandidos ou marginais. Vamos pensar que, na própria concepção
do shopping, não está prevista a presença desse público, ainda mais em grupo e
fazendo barulho. Pergunto-me se fosse em um shopping mais nobre, com jovens
brancos de classe média alta, vestidos como se espera que um jovem deste
estrato social se vista, se a repercussão seria a mesma, se a criminalização
seria a mesma. Talvez fosse considerado apenas um flash mob. Há uma tendência, por
parcela considerável da classe média, da mídia e do poder público de perceber
os jovens pobres a partir de três perspectivas, quase sempre exclusivistas: a
do bandido, a da vítima e a do herói.
El País – Como funcionam estas três perspectivas – bandido, vítima e herói?
Alexandre Barbosa Pereira – São muito mais formas
de enquadrar esses jovens por aqueles que querem tutelá-los do que categorias
assumidas pelos próprios jovens. Por isso, são contextuais. Dependendo da
situação e dos atores sociais com quem dialogam, o jovem pode ser entendido a
partir de uma dessas categorias. O pichador, por exemplo, é um agente que pode
mobilizar todas essas classificações, dependendo do contexto e dos
interlocutores: a polícia, a secretaria de cultura, os pesquisadores acadêmicos
ou a ONG que quer salvar os jovens da periferia da violência. No caso do funk,
por exemplo, já há comentários e mesmo textos de pessoas mais politizadas vendo
os rolezinhos como uma ação afirmativa ou extremamente contestatória. Para
estes, os protagonistas dos rolezinhos são vítimas que se tornaram heróis.
Outros, como a polícia, a administração dos shoppings e a clientela, mas também
seus vizinhos, que moram lá nos bairros pobres da periferia, enxergam neles
principalmente vilões e mesmo bandidos.
Jovens como estes que estão nos rolezinhos não necessariamente aceitam
se encaixar nesses rótulos, mas, em alguns casos, podem também se encaixar em
todos eles ao mesmo tempo. Não se pode simplificar um fenômeno como este.
Porém, se pensarmos esse movimento que surge principalmente com o hip hop, de
valorizar a periferia como espaço político e de afirmação positiva, é possível
ver, sim, ainda que em menor intensidade, uma certa ação política. De dizer:
“Somos da quebrada e temos orgulho disso”. Um movimento de reversão do estigma
em marca positiva.
El País – Mas há, de fato, uma ação consciente, organizada, com um sentido
político prévio? Ou o sentido está sendo construído a partir dos
acontecimentos, o que é igualmente legítimo?
Alexandre Barbosa Pereira – Olha, sinceramente, é
difícil dizer se há um sentido político, direto, consciente e/ou explícito.
Talvez por parte de alguns, mas pelo que vi nas redes sociais, não da maioria.
Se o movimento persistir ou tomar outras formas, pode ser que tal sentido
político fique mais forte. Por enquanto é difícil analisar esse ponto. O
antropólogo (indiano) Arjun Appadurai analisa há algum tempo as mudanças que se
processam no mundo por causa do avanço das tecnologias de comunicação e de
transporte. Segundo este autor, as pessoas cada vez mais se deslocam no mundo
atual, e não apenas fisicamente, mas também e talvez principalmente pela
imaginação, por causa de meios de comunicação como a televisão e, mais
recentemente, pela internet. Hoje é possível imaginar-se nos mais diferentes
lugares do mundo, mas também em diferentes classes sociais. O que são os
videoclipes de funk da ostentação que não imagens/imaginações que os jovens
produzem sobre o que seria pertencer a outra classe social ou possuir melhores
condições econômicas para o consumo?
Essa imaginação, segundo esse autor, pode
constituir-se como um projeto político compartilhado, mas pode também ser
apenas uma fantasia, como algo individualista e egoísta, sem grandes potenciais
políticos. Parece-me que o funk da ostentação em São Paulo e movimentos como o
dos rolezinhos nos shoppings têm intensamente essas duas potências. Difícil
saber se alguma delas irá prevalecer ou tornar-se hegemônica.
O que são os videoclipes de funk ostentação que não
imagens que os jovens produzem sobre o que seria pertencer a outra classe
social?”
El País – A escolha da música do MC Daleste, assassinado num show em Campinas,
para o rolezinho promovido no Shopping Internacional de Guarulhos, pode ter um
significado a mais?
Alexandre Barbosa Pereira – A escolha da música
do MC Daleste na entrada dos jovens no shopping de Guarulhos me pareceu
bastante significativa, por vários motivos. Principalmente, porque a morte dele
no palco, cantando funk, de certa forma construiu um marco para esse funk da
ostentação. O seu assassinato acabou por dar ainda mais visibilidade a esta
vertente do funk paulista. MC Daleste cantava proibidão antes e, assim, essa
relação confusa entre crime e consumo manifesta-se de modo bastante forte no
que o MC Daleste representa. Há no seu próprio nome artístico essa afirmação de
um certo orgulho do lugar de onde vem e de ser da periferia, que tanto o funk
quanto o hip hop expressam. Não é por acaso que ele é “Da Leste”. Lembremos que
Guarulhos também está à leste da Região Metropolitana de São Paulo.
El País – Hoje, uma parte significativa da
geração que se criou nas periferias com movimentos contestatórios como o hip
hop e a literatura periférica ou marginal tem, pelo funk da ostentação,
assumido os valores de consumo das classes médias e alta. Como você analisa
este fenômeno e o insere no contexto histórico atual do Brasil?
Alexandre Barbosa Pereira – O que um evento como
esse parece evidenciar é, por um lado, esse anseio por consumir e por
afirmar-se pelo consumo que esses jovens vêm demonstrando já há algum tempo,
pelas letras dos funks, mas que também já é visto no hip hop. Apesar das
críticas de certos segmentos do hip hop, não sei se o funk ostentação rompe com
o hip hop mais politizado dos anos 1980 e 1990 ou se oferece uma das muitas
possíveis continuidades a esse movimento cultural. Parece-me que o funk
ostentação é uma releitura paulista, muito influenciada pelo hip hop, do funk
carioca. Muitos MCs de funk eram MCs de hip hop, muitos deles, além dos funks,
cantam também raps, e músicas dos Racionais são ouvidas nos shows. Trechos de
letras de músicas dos Racionais podem ser encontrados facilmente nas letras do
funk. Agora, o fato é que o funk não é tão marcado pela questão política como o
hip hop. O Montanha, de Cidade Tiradentes, disse-me algo interessante, certa
vez, de que, na verdade, o hip hop ofereceria um espaço de expressão política
que faltava aos jovens, já o funk é um espaço de lazer e de sociabilidade.
Parece-me uma reflexão interessante. Não que o hip hop não possa conter lazer e
sociabilidade também, nem o funk, protesto político, mas que as duas vertentes
tendem para um dos polos. O funk, aliás, ganhou esse grande espaço junto aos
jovens das periferias de São Paulo porque, nessa articulação de um espaço de
lazer, configurou-se um espaço para as mulheres que, no hip hop, era mais
difícil. As mulheres são presença fundamental nos bailes funks. O protagonismo
da dança sempre foi delas. Ainda que os meninos também dancem e as meninas
participem cada vez mais como MCs. O hip hop sempre foi muito mais masculino,
da dança ao estilo de se vestir.
Devemos questionar não a ação dos meninos, mas as
relações sociais fomentadas na contemporaneidade que se pautam cada vez mais
pela busca do reconhecimento pelo consumo, pela posse de bens.”
El País – Mas qual é a diferença, na sua
opinião, entre a forma como, por exemplo, os Racionais falam em consumo e os
MCs da ostentação falam de consumo?
Alexandre Barbosa Pereira – Há aí duas
perspectivas. Quando digo que os Racionais já cantavam isso, quero dizer que
eles já identificavam essa necessidade de consumir da juventude. E de consumir
o que eles achavam que era bom, nada de consumo consciente. Por isso digo que
os Racionais já faziam, há mais de dez anos, uma leitura desse anseio por
consumir dos jovens pobres. Por outro lado, há essa dimensão de movimentos como
o dos escritores da periferia, promovendo produtos da periferia, pela
periferia. O funk ostentação começa sem se preocupar com essa questão
diretamente. Ele não tem dor na consciência por cantar o consumo em suas
músicas e aderir ao sistema, por exemplo. Porém, indiretamente, se acaba
chegando a um outro ponto, na medida em que uma parcela considerável de jovens
da periferia passa a possuir algum tipo de renda com a produção do funk. Sejam
os meninos que gravam os videoclipes, os próprios MCs, mas também empresários,
produtores, técnicos e mesmo alguns MCs tornando-se empreendedores e criando
seus próprios negócios. Como o MC Nego Blue, que observando de perto o sucesso
das roupas de grife entre os jovens, criou a Black Blue, uma loja de roupas
cujo símbolo é uma carpa colorida. Hoje, além de possuir lojas próprias, já
vende suas roupas em lojas multimarcas, ao lado de camisas da Lacoste ou de
outras marcas famosas que os meninos procuram, e por um preço muito parecido.
Uma das empresas que agencia shows de funk em Cidade Tiradentes chama-se
justamente “Nóis por nóis”.
Os rolezinhos parecem dizer: não apenas queremos consumir, mas queremos
ocupar em massa e se divertir aí nos seus shoppings, nos seus ou nos nossos. É
importante perceber também que os shoppings onde os eventos ocorreram estão em
regiões mais periféricas, provavelmente próximos ao próprio bairro de moradia
dos jovens. Por enquanto, eles não têm ido aos templos maiores do consumo de
luxo na cidade, na região dos Jardins, Faria Lima, Marginal Pinheiros etc. Pode
haver aí também um componente de um termo que surgiu muito forte para mim na
pesquisa que fiz em escolas de ensino médio, no meu doutorado, que é a ideia do
“zoar”. Eles querem zoar, que é chamar a atenção para si e se divertir,
namorar, brincar e, se for preciso, brigar.
El País – Por que, neste momento, o lazer se impõe como uma reivindicação desta
geração, acima de questões como saúde, educação e transporte de qualidade?
Alexandre Barbosa Pereira – Acho que não há uma
reivindicação política bem formuladinha como acontecia com o hip hop: queremos
mais saúde, educação e lazer. Eles simplesmente querem estar nos shoppings para
zoar e vão. Não há essa reflexão mais elaborada que o hip hop produz, é mais
espontâneo. Esse talvez possa ser um ponto de distinção. E o próprio funk é,
por si só, lazer e diversão, um dispositivo poderosíssimo para dançar e motivar
paqueras. O zoar pode ser lido como um ato político, mas não me parece
intencional. Acho que cria uma tensão que é política, que é de disputa de poder
pelos espaços da cidade, mas não há um manifesto pela zoeira ou pelos
rolezinhos, como houve, por exemplo, no caso do manifesto da arte periférica
dos escritores.
É como se a sociedade dissesse: ‘Vocês, pobres, podem
consumir, mas ir ao shopping em grandes grupos, só para zoar e cantar funk, aí
já é vandalismo’.”
El País – Há também um movimento maior para sair dos guetos e ocupar os guetos da
classe média? Em massa e não mais individualmente, como quando um grupo de rap
aparecia numa TV, mesmo sendo a MTV, ou um escritor do movimento literário
marginal ou periférico publicava numa grande editora? Esta é uma novidade
importante?
Alexandre Barbosa Pereira – Acho que abre, sim,
para fora do gueto, do bairro onde se vive, mas não para muito longe, pois,
afinal, os shoppings para os quais eles vão estão do lado de suas casas. Neste
sentido, acho que o hip hop, apesar de falar mais do gueto, abre-se muito mais
para fora do gueto, na medida em que conquista um espaço importante nas
políticas públicas de cultura, por exemplo.
Claro que esse espaço de lazer é problemático e
conflitivo mesmo dentro dos bairros das periferias onde moram esses jovens. Se
entrevistarmos os seus vizinhos, certamente a maioria vai se posicionar
totalmente favorável à proibição das festas de rua que eles organizam, com som
alto que muitas vezes toma a madrugada toda. Por isso, acho importante não
tomar o funk nem como um movimento libertador, nem como o grande vilão ou o
grande movimento de corrupção da juventude contemporânea, como setores mais
moralistas, à esquerda e à direita, tendem a fazer.
A questão do consumo também me parece problemática. O desejo pelo
consumo sempre existiu. Bem antes do governo Lula, o processo de urbanização
induz a esse apego maior ao consumo. Porém, não dá para se negar que houve, nos
últimos anos, também uma melhora econômica para segmentos que antes estavam
bastante afastados do mercado. Porém, acho que reduzir o sucesso do funk da
ostentação a isso é simplificar demais o movimento e esquecer que ocorreram e
ocorrem movimentos juvenis parecidos em outras partes do mundo, como o próprio
gangsta rap, nos Estados Unidos, no qual os videoclipes se inspiram.
Devemos questionar não a ação dos meninos, mas as relações sociais
fomentadas na contemporaneidade. É preciso conceder aos jovens, e não apenas
aos pobres, mas aos de classe média e alta também, outros espaços de
reconhecimento e de estabelecimento de relações sociais que não sejam pautados
pela afirmação por meio da posse e do consumo de bens. Porque, afinal, como
dizem os Racionais, mais uma vez: “Quem não quer brilhar, quem não? Mostra
quem. Ninguém quer ser coadjuvante de ninguém”. De repente, para alguns, ter um
tênis caro, um smartphone de última geração ou ir ao shopping para zoar, pode
ser uma forma encontrada para tentar brilhar.
El País – Ao ocupar os shoppings, os adeptos do funk da ostentação estariam
promovendo sua primeira atitude de insurgência contra o sistema, no sentido de:
“Vou ocupar o espaço que me é negado ou onde não me querem”. É isso? Ou as
próprias letras das músicas, interpretadas, em geral, como adesão ao sistema,
já seriam, de fato, uma insurgência, na medida que se apropriam,
simbolicamente, dos valores da elite e da classe média e, agora, com os
rolezinhos, também de seus espaços físicos?
Alexandre Barbosa Pereira – Sim, acho que essa é
a maior irritação da classe média com esses movimentos. Basta ver os
comentários aos videoclipes no YouTube, irritados com os meninos ostentando e
exibindo-se com produtos mais caros, que não deveriam estar com aqueles
meninos, pobre e negros, em sua maioria. Esta é a principal insurgência que
eles provocam. A classe média, de uma maneira geral, a mais pobre ou a mais
rica, a mais ou menos intelectualizada, irrita-se bastante quando os
subalternos compram bens caros, mesmo antes deles. Já ouvi comentários
indignados, do tipo: “Minha empregada comprou uma televisão de última geração,
melhor do que a minha”. Isso tem antecedentes históricos que parecem refletir
até hoje. James Holston, ainda no livro sobre cidadania insurgente, que citei
anteriormente, traz como exemplo a legislação colonial portuguesa, que proibia
aos negros o uso de joias e artigos considerados finos...
Os comentários em sites e redes sociais revelam esse
profundo racismo entranhado em parcela considerável da população brasileira.”
El País – Parece que os “rolezeiros” dos shoppings estão ocupando o mesmo lugar
simbólico dos “vândalos” nas manifestações, na narrativa feita por parte da
grande mídia e pelas autoridades instituídas. Como você interpreta essa reação?
Alexandre Barbosa Pereira – O que me assustou de
verdade nessa história toda foram as reações, de mídia e de polícia, condenando
e mandando prender, mesmo em casos em que disseram que não houve arrastões, mas
correrias. Fico questionando quem provocou a correria: os jovens ou a ação dos
seguranças e da polícia? Eventos como estes revelam também uma faceta
complicada e extremamente preconceituosa da classe média brasileira. Dei uma
entrevista curta para o site de um grande grupo de comunicação e fiquei
assustado ao ler os comentários dos leitores, de um ódio terrível contras os
meninos e meninas que foram aos shoppings, contra os pobres, contra mim, que
tive uma fala dissonante na entrevista, ressaltando a forma preconceituosa com
que tal tema vinha sendo tratado. Ao falarem do evento, algumas palavras
utilizadas como categorias de acusação contra os jovens e as jovens foram
bastante reveladoras do preconceito, e mesmo do racismo, deste segmento social:
“favelados”, “maloqueiros”, “bandidos”, “prostitutas” e “negros”. Nesse último
caso, inclusive, fica evidente o racismo que aparece em muitos comentários
dessa notícia, mas também nas comunidades dos rolezinhos que os jovens criaram
nas redes sociais. Um dos comentários pede para que os jovens voltem para a
África. Isso é muito grave. Revela esse profundo racismo entranhado em parcela
considerável da população. Como se tal sociedade dissesse, por meio dos
representantes dos shoppings, da mídia e da polícia, brincando um pouco com a
questão das manifestações de junho: “Vocês, pobres, podem consumir, mas ir ao
shopping em grandes grupos, só para zoar e cantar funk, aí já é vandalismo”.
El País – A classe média é racista?
Alexandre Barbosa Pereira – O que chamamos de
classe média não é um todo homogêneo. É possível segmentá-la em diferentes
níveis e a partir de diferentes contextos, é possível pensar em uma classe
média intelectualizada ou não intelectualizada. Contudo, parece-me que a
divisão mais importante para se pensar a classe média em São Paulo é a que se
dá por critérios socioeconômicos e espaciais. Há a classe média que está
concentrada principalmente no entorno do eixo central, que vai do Centro a
Pinheiros, passando pela Avenida Paulista e bairros próximos. Esta, em sua
maioria, vive numa bolha e tem poucos contatos com outras classes sociais, com
exceção dos trabalhadores subalternos: porteiros, empregadas domésticas etc.
Para esta, em grande medida, o Shopping Itaquera pode estar mais distante do
que Paris ou Londres.
Porém, há também certa classe média baixa que vive na periferia. Citando
novamente o Holston, ele fala de uma diferenciação que se produziu nas
periferias de São Paulo entre aqueles que compraram seus terrenos, ainda que
por meio de contratos obscuros, e aqueles que ocuparam os espaços da cidade,
formando as favelas. Essa pequena diferença não cria um grande abismo
econômico, mas produz uma profunda diferenciação, por meio do qual um grupo
estigmatiza o outro. Já vi um indivíduo desta classe média da periferia
questionando programas como o bolsa família, porque tinha visto potes vazios de
iogurte no lixo da favela. Este indivíduo afirmava que nem ele consumia iogurte
com tanta frequência, como eles se davam ao direito de consumir tal produto,
que era um luxo, raro, mas sobre o qual ele detinha certa exclusividade?
A questão do auxílio aos mais pobres, principalmente o bolsa família, é
um forte fator de estigmatização por parte desses diferentes segmentos da
classe média, mas principalmente por parte dessa classe média da periferia.
Estive, recentemente, em uma escola pública próxima a uma grande favela de São
Paulo. Segundo os professores, um dos problemas daquela escola era o fato de
que 90% dos alunos vinham da favela vizinha. E que, hoje, esses alunos estavam
muito acomodados, pois viviam de bolsas e na favela tinham tudo muito fácil,
com a grande quantidade de projetos presentes por lá. Inclusive, projetos de
música, ressaltou um professor. É muito importante refletir sobre isso, porque
esses professores, se não moram na favela, são vizinhos dela. Mas, ainda assim,
permitem-se diferenciar-se dos jovens por questões muito pequenas. E são estes
professores os responsáveis por formar esses jovens. Será que, com este olhar,
são capazes de lutar para que a escola se torne um espaço de convivência,
afirmação e reconhecimento para os jovens?
Para uma parcela da classe média de São Paulo, o
Shopping Itaquera pode estar mais distante do que Paris ou Londres.”
El País – Como você, que tem acompanhado o cotidiano de escolas públicas, em São Paulo,
percebe a educação?
Alexandre Barbosa Pereira – É necessário
pensarmos em uma educação para as diferenças, para que não caiamos mais na
armadilha da intolerância e das análises apressadas e preconceituosas de
setores das elites e das camadas médias, ao se referirem aos “subalternos”.
Lembro-me de um documentário português, que vale a pena ser assistido, sobre a
história de um arrastão que não existiu. Chama-se: “Era uma vez um arrastão” (assistaaqui). Nele,
conta-se do dia em que jovens caboverdianos ou descendentes de caboverdianos
resolveram frequentar a nobre praia de Carcavelos, em Portugal. A polícia, ao
ver a concentração de jovens de origem africana, assustou-se e resolveu
intervir, provocando uma grande correria, que foi noticiada como arrastão. Mas,
de fato, os jovens fugiam da repressão policial gratuita. Isso talvez nos
ensine algo sobre os arrastões que estamos a criar todo dia, criminalizando
jovens pobres cotidianamente.
Quando estive pesquisando em escolas públicas da periferia de São Paulo,
era comum ouvir dos professores que, naquela escola, os alunos eram todos
bandidos ou marginais. O discurso da criminalização é efetivo e poderoso e
condena muita gente ao fracasso escolar e mesmo ao crime. O sociólogo polonês
Zygmunt Bauman, num livro sobre educação e juventude, ressalta a necessidade
cada vez mais premente, na contemporaneidade, de desenvolvermos a arte de
conviver com os estranhos e a diferença. Em especial num mundo no qual as migrações
tendem a aumentar cada vez mais. No nosso caso, não foi preciso a chegada de
estrangeiros para a expressão das mais brutais formas de preconceito, pois os
estrangeiros éramos nós, os brasileiros. Mas brasileiros que moram muito, muito
distante, ainda que vizinhos. Moram em Guaianazes, Capão Redondo, Grajaú,
Cidade Ademar, Cidade Tiradentes, Vila Brasilândia...
El País – Em que medida, na sua opinião, os rolezinhos se ligam às manifestações
de junho?
Alexandre Barbosa Pereira – Acho que não há uma
ligação direta. Mas, indiretamente, é possível perceber a reivindicação comum
do uso do espaço público e de quebra das marcas da segregação. Lembro-me que,
antes das manifestações de junho, para a imprensa conservadora era um tabu
ocupar a Avenida Paulista. Os movimentos sociais mostraram que não apenas não
era um tabu, como era um direito, o direito de ir às ruas e ocupá-las para
protestar. Os rolezinhos não parecem ter uma pauta tão clara, mas também estão,
ainda que indiretamente, dizendo: “Vocês não disseram que era bom consumir?
Pois bem, nós também queremos!”
El País – Essa ocupação de espaços que supostamente pertenceriam a “outros”, tanto
no caso das manifestações como no caso dos rolezinhos, parece marcar uma
novidade importante. O que está acontecendo?
Alexandre Barbosa Pereira – Acho que a
novidade está aí, mas é difícil dizer o que está acontecendo ou o que
acontecerá. Pode ser apenas um surto – algo parecido com o que foi a revolta da
vacina como reação às propostas políticas opressoras de reforma sanitária do
Rio de Janeiro, por exemplo – ou pode ser uma nova forma de pensar os espaços
públicos e privados nas cidades brasileiras. Porém, é difícil prever. Os
rolezinhos podem ter acabado nesta semana, por exemplo. E movimentos como os de
junho não se repetiram com tanta intensidade e repercussão. Contudo, o que movimentos
como estes garantem é a possibilidade de se tensionar essa ocupação dos espaços
urbanos, amplamente negada até então.
Aqui
não foi preciso a chegada de estrangeiros para a expressão das mais brutais
formas de preconceito, pois os estrangeiros éramos nós, os brasileiros que
moram em Guaianazes, Capão Redondo, Grajaú, Cidade Ademar, Cidade Tiradentes,
Vila Brasilândia...”
El País – Por que este nome, rolezinho? E que significados ele contém?
Alexandre Barbosa Pereira – Rolezinho é um termo
que está diretamente ligado à ideia de lazer. De sair para se divertir e
usufruir da cidade. Os pichadores, com os quais realizei pesquisa no mestrado,
também usam a ideia de rolê, para se referirem às suas pichações. Com isso
estão dizendo que pichar é dar voltas para conhecer e se apropriar da cidade.
Parece que, por este termo, indiretamente, podemos entender uma reivindicação
pelo direito de se divertir na cidade.
El País – Divertir-se na cidade não seria um ato de insubordinação para jovens
pobres e negros? Talvez até o maior ato de insubordinação?
Alexandre Barbosa Pereira – Sim, principalmente
numa sociedade em que pobres e negros têm que trabalhar – e apenas trabalhar –
sem reclamar. Lembremos de que a ROTA, no final do regime militar, atuava nas
periferias abordando os moradores e cobrando-lhes a carteira profissional como
prova de que eram trabalhadores e não vagabundos. Devotados, portanto, ao
trabalho e não à diversão. Agora, claro que esses jovens não estão pensando
exatamente nisso. Querem muito mais é se divertir.
El País – Como entender este fenômeno, que é, ao mesmo tempo, uma insubordinação e
uma adesão ao sistema?
Alexandre Barbosa Pereira – Acho que a melhor
palavra é paradoxo. O funk da ostentação em São Paulo é paradoxal: não dá para
situá-lo num polo ou noutro, dentro do modo tradicional de pensar a política.
Conservador ou revolucionário? Nenhum dos dois, mas com possibilidade para os
dois ao mesmo tempo.
Eliane Brum – escritora, repórter e
documentarista
– 23.12.2013