Manifestações nacionais, que
ocorrem até o dia 5 (de outubro de 2013), pretendem chamar a atenção para os
recentes ataques aos direitos indígenas por parte do Congresso e do governo
federal.
Igor Ojeda
No
próximo dia 5 de outubro a promulgação da Constituição Federal de 1988, chamada
por muitos de “cidadã”, completa 25 anos. O texto, elaborado com o objetivo de
passar uma borracha no período da ditadura civil-militar que se encerrava, é
considerado avançado e garantidor de direitos, embora muitas vezes suas
determinações não sejam respeitadas ou aplicadas.
A
ameaça recente a um de seus artigos, porém, vai além do mero não cumprimento. A
intenção é destruí-lo. Quem faz o alerta são os indígenas reunidos em torno da
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que nesta semana realizam
uma série de
manifestações em protesto contra o que chamam de “ataque
generalizado aos direitos territoriais dessas populações que parte do governo,
da bancada ruralista no Congresso e do lobby de grandes empresas de mineração e
energia” e em defesa da Constituição. O artigo em questão é o 231, que assegura
o direito “imprescritível” dos povos indígenas sobre suas terras.
“Os
direitos constitucionais dos povos indígenas, dos quilombolas e de outras
populações tradicionais, assim como os seus territórios, encontram-se sob forte
ataque por parte de interesses econômicos poderosos, que defendem o seu direito
à propriedade mas não respeitam os nossos direitos coletivos à nossa terra
sagrada, e ainda querem tomar para si as terras públicas e os seus recursos
naturais”, diz a Carta de
Mobilização da articulação.
A
Apib é composta pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia
Brasileira (Coiab), Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste,
Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), Articulação dos Povos Indígenas do Sul
(Arpinsul), Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (Arpinsudeste), Conselho
dos Povos Indígenas de Mato Grosso do Sul e Grande Assembleia do Povo Guarani
(Aty Guasu). Essas organizações, por sua vez, reúnem centenas associações e
comunidades indígenas.
Na
Carta de Mobilização, a Apib denuncia uma “ofensiva legislativa sendo promovida
pela bancada ruralista”, que “afronta, inclusive, acordos internacionais
assinados pelo Brasil, como aConvenção 169
da Organização Internacional do Trabalho (OIT) , e a Declaração da
Organização das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas ”.
Os indígenas citam, como exemplos dessa ofensiva, as PECs 215/00, 237/13 e
038/99, o PL 1610/96, e o PLP 227/12.
Segundo
eles, no entanto, “o próprio governo federal tem mantido uma conduta omissa, em
relação aos direitos dos povos, e conivente com os interesses dos ruralistas e
do latifúndio, nossos inimigos históricos, que durante o ano passado aprovaram
um novo Código Florestal adequado aos próprios interesses e este ano pretendem
aniquilar direitos indígenas ao território”. Tal postura se materializaria em
medidas como a Portaria Interministerial 419/2011, a Portaria 303/2012 da
Advocacia-Geral da União, e o Decreto 7957/2013.
Exploração por terceiros
De
maneira geral, avaliam os indígenas e seus apoiadores, a maioria dessas
propostas e medidas busca evitar o processo de reconhecimento e demarcação de
terras de povos originários ou abri-las para a exploração por terceiros. “Os
povos indígenas sofrem o maior ataque desde a promulgação da Constituição, há
25 anos. A bancada ruralista quer de todas as formas limar os direitos
garantidos, visando explorar os territórios indígenas e atender o interesse do
agronegócio, atender mesmo o capitalismo. Tudo isso, claro, é o Congresso
alinhado ao Poder Executivo. O Executivo está comungando com isso”, alerta
Sônia Guajajara, coordenadora executiva da Apib. Para Cleber Buzatto,
secretário executivo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), “esse ataque
violento aos dispositivos que sustentam os direitos indígenas mostra a
existência de uma configuração de forças políticas e interesses econômicos
extremamente articulados, que fazem uso de um número amplo de instrumentos para
atingir seu objetivo”.
De
acordo com o artigo 231 da
Constituição Federal , “são reconhecidos aos índios sua
organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos
originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União
demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. O parágrafo
segundo desse artigo garante que aos índios lhes cabe “o usufruto exclusivo das
riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”. Já o parágrafo sexto
diz: “As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os
direitos sobre elas, imprescritíveis”.
Não é
esse, no entanto, o entendimento de grandes empresas do agronegócio, de
mineração e energia, parlamentares ligados a esses setores e governo federal.
“No Brasil, pretende-se quintuplicar a produção mineral e expandir o agronegócio.
98% das terras indígenas estão na Amazônia, onde se concentram os minérios e as
terras ainda não ocupadas pela agropecuária”, lembra a deputada federal Janete
Capiberibe (PSB/AP), integrante da Frente Parlamentar de Apoio aos Povos
Indígenas. Segundo ela, dada a grande quantidade de ruralistas no Congresso
Nacional, “se numericamente não houver uma pressão muito grande dos povos
indígenas, esse trator vai passar por cima de seus direitos”.
PEC 215
De
autoria do deputado federal Almir Sá (PPB/RR), a Proposta de
Emenda à Constituição 215 , do ano 2000, propõe transferir do
Executivo para o Congresso Nacional a prerrogativa exclusiva de aprovar
demarcações de terras indígenas e ratificar as demarcações já homologadas.
Lideranças indígenas e apoiadores denunciam que, numa instância dominada por
ruralistas, essa seria uma estratégia para travar de vez as demarcações. “O
Poder Legislativo sofre forte influência do agronegócio, então, há outros
interesses influenciando na tramitação dessa PEC. Se for aprovada, o processo
de demarcação vai ficar nas mãos do agronegócio. Os ruralistas querem assegurar
direitos dos grandes detentores de propriedade, em detrimento dos direitos da
população indígena”, afirma a senadora Ana Rita (PT/ES), que na última
terça-feira (1) organizou, por meio da Comissão de Direitos Humanos do Senado,
a qual preside, um debate a respeito da Constituição e direitos indígenas.
Em 16
de abril deste ano, centenas de indígenas ocuparam o plenário da Câmara dos
Deputados para impedir que os partidos indicassem nomes à comissão especial que
analisaria a proposta. Diante da pressão, o presidente da casa, o deputado
Henrique Alves (PMDB/RN), convenceu os líderes partidários a suspenderem as
indicações temporariamente. No entanto, em 18 de setembro estava prevista a
instalação dessa comissão, que dos 21 titulares já tinha 16 indicados – 14
destes integrantes da bancada ruralista. No mesmo dia, porém, Henrique Alves
suspendeu a reunião que a trataria – a pedido dos parlamentares do PT, que
queriam mais tempo para discutir a PEC. O PT é contrário à proposta e, por
isso, ainda não indicou seus três nomes a que tem direito na comissão especial.
Os
opositores da PEC 215 argumentam que ela é inconstitucional, em primeiro lugar,
por pretender transferir ao Legislativo uma prerrogativa do Executivo, o que
violaria o princípio da separação de poderes. “Não cabe ao Legislativo o papel
de executor, e sim o de criar legislações e fiscalizar se estas se cumprem. O
papel de demarcar terras é do Executivo, em particular da Funai [Fundação
Nacional do Índio], que foi criada para isso”, diz a senadora Ana Rita. Já a
deputada Janete Capiberibe, citando o jurista Dalmo Dallari, que participou de
uma das reuniões do grupo de trabalho sobre demarcações criado após a ocupação
da Câmara em abril, destaca que a proposta violaria também o artigo 231 da
Constituição.
No
começo de agosto deste ano, integrantes da Frente Parlamentar de Apoio aos
Povos Indígenas protocolaram no Supremo Tribunal Federam um mandado de
segurança para que o órgão impedisse a criação da comissão especial que
analisaria a PEC 215 e sua posterior tramitação, discussão e votação. Em
setembro, o ministro Luís Roberto Barroso rejeitou a solicitação por considerar
que o debate sobre o assunto não seria suspenso, embora tenha afirmado em sua
decisão que a proposta poderia de fato fragilizar a proteção constitucional aos
direitos indígenas. “Uma vez finalizada a tramitação, entraremos de novo com o
pedido de impugnação da matéria já votada e aprovada na Câmara e no Senado,
para que o STF nos conceda liminar suspendendo os efeitos da lei. Porque é
inconstitucional”, revela a deputada do Amapá.
PLP 227
Outro
motivo de preocupação dos indígenas é o Projeto de
Lei Complementar (PLP) 227 , de autoria do deputado Homero
Pereira (PSD/MT), que, de acordo com seus críticos, permite atividades de
terceiros em terras indígenas. A proposta pretende regulamentar o parágrafo
sexto do artigo 231 da Constituição, que veta o uso desses territórios por não
índios “ressalvado relevante interesse público da União”. O problema, no entanto,
é que o PLP, em seu artigo primeiro, expande esse conceito: “São considerados
bens de relevante interesse público da União (…) as terras de fronteira, as
vias federais de comunicação, as áreas antropizadas produtivas que atendam a
função social da terra (…)”. Por “áreas antropizadas produtivas” entende-se
atividades realizadas por não índios.
“Em
termos de conteúdo, o PLP 227 se equipara ou é pior que a PEC 215. Porque o 227
acaba abrindo as terras indígenas a todos os setores que têm interesse nelas, como
o agronegócio, a mineração e as empreiteiras. Esses setores tentam emplacar uma
versão de que aquilo que é interesse deles seja considerado pelo Estado como
relevante interesse público da União”, argumenta Cleber Buzatto, do Cimi. Um
PLP semelhante, ainda sem número, foi apresentado recentemente pelo senador
Romero Jucá (PMDB-RR) à Comissão Mista de Consolidação da Legislação Federal e
Regulamentação da Constituição Federal.
Executivo
De
parte do Poder Executivo, as ameaças vêm, segundo as lideranças indígenas,
da Portaria
Interministerial 419/2011 – que agiliza os procedimentos
administrativos para a construção de empreendimentos que afetam terras
indígenas, como hidrelétricas –, da Portaria
303/2012 da Advocacia-Geral da União – que permitiria,
por exemplo, intervenções militares e empreendimentos hidrelétricos, minerais e
viários em terras indígenas sem consulta prévia aos povos, além da revisão dos
territórios já demarcados e homologados – e do Decreto
7957/2013 – braço das Forças Armadas criado, segundo os
críticos, para a repressão de
manifestações de populações contrárias aos grandes empreendimentos .
“O
governo federal busca, de todas as formas, medidas para regulamentar a
exploração dos recursos naturais dentro das terras indígenas. O plano de
governo é baseado na agenda desenvolvimentista sem considerar a questão social.
Tudo está valendo para que se possa executar empreendimentos que façam o Brasil
se tornar uma potência econômica mundial”, critica Sônia Guajajara, da Apib. “A
gente não é contra que o Brasil cresça, mas desde que não afete os direitos das
minorias.”
O
deputado Luiz Carlos Heinze (PP-RS), presidente em exercício da Frente
Parlamentar da Agropecuária – a bancada ruralista –, e o ministro Gilberto
Carvalho, da Secretaria Geral da Presidência da República, não responderam às
solicitações de entrevista até a publicação desta matéria.
Igor Ojeda –
da Reporter Brasil – 04.10.2013
IN Brasil de Fato - http://www.brasildefato.com.br/node/26163