No Brasil a lógica da
senzala continua e ganha novos tons com a banalização do servilismo.
Gabriel
Bonis, Rodrigo Martins e Willian Viera
No Brasil da dita nova classe média, o serviço
doméstico se formaliza. Mas a lógica da senzala continua e ganha novos tons com
a banalização do servilismo o rol de profissões aparentemente absurdas,
ligadas ao servilismo exigido pelos ricos, encontra eco nos "personal
shoppers", compradores de luxo que adquirem desde compras de supermercado
até roupas de grife para o cliente. "Os contratantes não têm tempo para
essas tarefas", explica Silvana Bianchini, consultora de imagem e diretora
da Dresscode International, que fornece o serviço. Alguns clientes só descobrem
quais roupas foram compradas para eles quando abrem as embalagens. Pela
exclusividade pagam 300 reais a hora.
E o que dizer dos "passeadores de
cachorro", jovens universitários que se apinham numa târde de chuva no
Parque do Ibirapuera, na parte rica de São Paulo, para exercitar os cães de
raça das madames? "O animal passeia, brinca e depois damos uma limpada nas
patas e barriga, porque a maioria fica dentro de casas e apartamentos e pode
sujar os tapetes", conta Rauní Schimpl, estudante de biologia que passeia
com sete cães, duas horas, todo dia.A15minutos dali, em uma creche canina com
piscina, gramado e hospedagem, os cães recebem o cuidado de babás. E refletem a
necessidade de mimos dos donos. "Alguns querem que os cachorros comam
frutas de sobremesa e comidas melhores que a dos funcionários", diz Paulo
Carreiro, dono do lugar. Para vigiar os funcionários, há sete câmeras na casa:
os donos podem acompanhar os bichos de casa, pela internet. Por que ter um
cachorro, se ele passa o dia na creche ou com um passeador? Carreiro não tem
resposta.
Mas a resposta para a existência disseminada desse
tipo de função servil, de cunho nitidamente classista, "é a lógica da
senzala que predomina no Brasil", afirma o sociólogo Jacob Carlos Lima,
pesquisador da UFSCar. "O trabalho braçal e doméstico é visto como coisa
de pobre. E isso se reproduz na estrutura social." Daí as políticas
públicas, como as de transporte coletivo, por exemplo, serem secundárias - por
terem nítida relação de classe. "Basta ouvir as reclamações de os
aeroportos parecerem uma rodoviária. São valores da cultura brasileira, na qual
a desigualdade é a norma."
Aliada à cultura de servilismo vem a inexistência
de uma infraestrutura pública de serviços para o cuidado de crianças e idosos
(e, parece, cães), que faz com que a entrada no mercado das classes média e
alta seja acompanhada de estratégias privadas, entre elas a contratação de
mensalista e babá - e, por que não, a transferência do ônus de estacionar um
carro ao manobrista. "Motoristas, seguranças, babás vinculam-se aos
empregos que permitem à família manter um séquito de trabalhadores domésticos",
frisa Lima. O caso dos seguranças é tácito. "É necessário criar muros
simbólicos para afastar as classes perigosas. Condomínios, cercas elétricas,
seguranças de preto, tudo mostra a sensação de insegurança generalizada da
classe média, ao passo que explicita sua sensibilidade social próxima a
zero." Para manter esse comportamento classista, é necessária uma
desigualdade brutal. E o Brasil é um dos líderes nesse quesito - o quarto da
América Latina, atrás até do pobre Paraguai. A remuneração média no Brasil é de
três salários mínimos, uma das mais baixas do mundo. Mas não é só a
precariedade que incomoda. Um grau arcaico de servilismo, encoberto pela
melhora na vida material, desponta na relação de patrões endinheirados (enem
tanto) com seus serviçais. Por que há um exército de manobristas, diaristas,
babás e outros serviçais para bajular a elite? "Porque o trabalho é mal
pago", resume a economista Hildete. "Num país com melhor distribuição
de renda, essas pessoas teriam funções mais produtivas."
De 1979 a 2009, o emprego com carteira assinada
entre trabalhadores domésticos cresceu, em média, 0,8% ao ano. "Se seguir
esse ritmo, o Brasil levará 120 anos para incluir todos na proteção social e
trabalhista", afirma o economista Mareio Pochmann, ex-presidente do Ipea.
Como a dinâmica das relações de trabalho dentro das residências é distinta da
existente nas empresas, as tentativas de formal ização falham, diz. Seria, por
exemplo, impossível fiscalizar o cumprimento dajornada ou o pagamento de horas
extras. Por isso, Pochmann propõe o fim dos contratos diretos entre as famílias
e os funcionários. O ideal seria a constituição de cooperativas ou prestadoras
de serviço. "É o que ocorre nos Estados Unidos e na Europa." O
problema é o custo. Com a terceirização, haveria alta de 60% no custo - e 20,8%
das vagas (1,9milhão) com remuneração de até meio salário mínimo mensal
deixariam de existir.
Com o crescimento da economia, porém, novos postos
de trabalho surgiriam. Mesmo ganhando menos, esses trabalhadores optariam por
qualquer outra ocupação, "com direitos trabalhistas assegurados e longe da
lógica serviçal".
Nesse cenário, a média dos empregados domésticos
envelhece. Se antes a maioria tinha até 24 anos (60,5% em 1970), agora esses
profissionais estão concentrados na faixa dos 25 a 44 anos (55,8%),segundo
dados do IBGE. "Isso mostra que as jovens podem estar se escolarizando
para não entrar nessa profissão", afirma Natália Fontoura, do Ipea.
Concorda o autor do livro A política do precariado, o sociólogo Ruy Braga,
professor da USP.Ao entrevistar centenas de operadoras de telemarketing, ele
concluiu que boa parte delas era de filhas de domésticas e, mesmo ganhando
menos, optava pelos call centers para fugir do estigma. "Para
não seguir os passos das mães, elas aceitam ganhar menos, mas ter acesso a
direitos trabalhistas e uma jornada de trabalho menor, que lhes permitem fazer
uma faculdade noturna", diz Braga.
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Aos 12 anos, Cleusa Maria de Jesus deixou os oito
irmãos na casinha apertada na periferia de Salvador para ser entregue pela mãe
a uma família com a promessa de ser tratada como filha e ir à escola pela
primeira vez. Em troca, faria o trabalho doméstico. A realidade era outra. Por
sete anos a menina teve de servir aos patrões 24 horas por dia, sem
remuneração, privacidade ou educação. “Ganhava os restos de comida e roupas
velhas. Era semiescrava”, diz ela. Aos 20 anos, trocou de trabalho e passou a
ganhar um salário (abaixo do mínimo), mas ainda vivia na casa da patroa, sem
folga. Só aos 34 anos tirou férias, após descobrir o sindicato das domésticas
baianas, do qual hoje é presidente. Uma história perversamente atual no Brasil,
tanto nos rincões desprovidos do olhar do Estado quanto nas metrópoles,
igualmente vítimas da cultura arcaica que normaliza resquícios escravistas e
faz das domésticas as mucamas de hoje.
“No interior
deste País, o que mais se vê é menina de 12 anos trabalhando por um prato de
comida”, diz Cleusa, ao falar com a segurança de quem viveu todos os meandros
do emprego doméstico no Brasil. Seu relato contraria o delírio de prosperidade
a povoar as páginas de jornais, nas quais as domésticas, com carro, casa e
dinheiro para gastar, viveriam em um eldorado. Muitas delas integram a chamada
“nova classe média”: basta ganhar pouco mais de mil reais para ter um papel no
atualíssimo mito econômico nacional, ainda que sigam submetidas ao pior do
servilismo nativo. “Tapas, empurrões, braços e pernas quebrados são denúncias
comuns”, diz – situação advinda do anacronismo de uma doméstica dormir na casa
do patrão. Quando o sindicato conseguiu do governo um conjunto habitacional
para 80 delas, houve 500 inscrições. “É o sonho de toda doméstica que passa dia
e noite a serviço do patrão ter liberdade”, diz. “Aqui, numa mansão de três
pisos onde deviam trabalhar cinco empregadas, tem uma. Não há nem controle de
horas trabalhadas.”
É fácil entender por
quê. O Brasil é o país com o maior número de empregados domésticos no mundo,
segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Eram ao menos 7,2
milhões em 2010, enquanto, em 1995, havia 5,1 milhões, mais de 95% deles
mulheres. No mundo, o número de empregadas também cresceu, mas nada se compara
ao boom de 41% no Brasil. Hoje, de cada seis mulheres que
trabalham no País, uma é doméstica. A expansão foi seguida pela alta de 47% nos
salários, impacto causado pelo aumento do mínimo nos anos Lula.
Gabriel
Bonis, Rodrigo Martins e Willian Viera – 23.01.2013
Passado ou futuro?
É verdade que, aos poucos,
ocorrem transformações. Com a crescente passagem para o regime de diarista,
aumenta o registro em carteira das que exercem funções domésticas. O problema
está no vagar das mudanças.
André Singer
O Ministério Público do Rio de Janeiro abriu
inquérito para investigar quatro clubes da cidade que teriam proibido o
ingresso de babás que não estivessem devidamente uniformizadas de branco. A
ação partiu do frei David dos Santos, da ONG Educafro, para quem, segundo
"O Globo" (17/1), a medida reproduziria "o cenário das célebres
gravuras de Debret, com a representação de 'sinhôs', 'sinhás', 'sinhozinhos' e
suas 'mucamas', em pleno século 21".
A persistência do passado, projetando sombras sobre
o futuro, inquieta, com razão, brasileiros do presente.
De acordo com a OIT (Organização Internacional do
Trabalho), o Brasil é o país com o maior número de empregados domésticos do
mundo. Seriam 7,2 milhões em 2010. Aqui, a instituição da trabalhadora que
dorme na casa do patrão, abolida há décadas do cotidiano da vasta classe média
em países mais igualitários, ainda responde pela maioria dos serviços do tipo.
Segundo o Ipea, só 30% seriam diaristas. Os dados constam de reportagem da
"Carta Capital" (23/1).
É verdade que, aos poucos, ocorrem transformações.
Com a crescente passagem para o regime de diarista, aumenta o registro em
carteira das que exercem funções domésticas. O problema está no vagar das
mudanças. O economista Marcio Pochmann chega a dizer que, nesse ritmo
histórico, vai demorar 120 anos para incluir todos os trabalhadores domésticos
"na proteção social e trabalhista".
O caso das domésticas é ilustrativo de fenômeno
mais geral. O lulismo impulsionou significativa redução da pobreza extrema. Na
última segunda, no Paraná, a presidente Dilma afirmou ter tirado quase 20
milhões de pessoas de tal condição e anunciou que, em março, nenhum dos
cadastrados pelo governo estará em situação de miséria. Isto é, todos contarão
com, pelo menos, R$ 70 ao mês.
Boa notícia, sem dúvida, e o Executivo deve ser
aplaudido por ela, uma vez que estende a mão a quem precisa de ajuda urgente.
Ocorre que um indivíduo que dispõe de R$ 2,30 por dia consegue comprar pouco
mais que um coco no interior do Piauí (Folha, 3/2). Saiu da emergência
de não ter o que comer, mas está muito distante dos confortos que o século 21
pode proporcionar.
Em 1952, em plena época das melhores esperanças
getulistas, a poeta Elizabeth Bishop afirmava simplesmente não haver classe
média no Brasil. Transcorridos 60 anos, ainda estamos às voltas com o sonho de
constituir uma sociedade em que a classe média seja abrangente, como pode
constatar quem ler a íntegra do discurso paranaense de Dilma.
Conclusão: o Brasil caminha para a frente, mas a
passo tão lento que fica difícil distinguir se, nele, constrói o futuro ou
eterniza o passado.
André Singer – Cientista político e professor da USP, onde
se formou em ciências sociais e jornalismo. Foi porta-voz e secretário de
Imprensa da Presidência no governo Lula – 09.02.2013
IN Folha de São Paulo – http://www1.folha.uol.com.br/colunas/andresinger/1228407-passado-ou-futuro.shtml