quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Os serviçais do Brasil


No Brasil a lógica da senzala continua e ganha novos tons com a banalização do servilismo.

Gabriel Bonis, Rodrigo Martins e Willian Viera
No Brasil da dita nova classe média, o serviço doméstico se formaliza. Mas a lógica da senzala continua e ganha novos tons com a banalização do servilismo o rol de profissões aparentemente absurdas, ligadas ao servilismo exigido pelos ricos, encontra eco nos "personal shoppers", compradores de luxo que adquirem desde compras de supermercado até roupas de grife para o cliente. "Os contratantes não têm tempo para essas tarefas", explica Silvana Bianchini, consultora de imagem e diretora da Dresscode International, que fornece o serviço. Alguns clientes só descobrem quais roupas foram compradas para eles quando abrem as embalagens. Pela exclusividade pagam 300 reais a hora. 
E o que dizer dos "passeadores de cachorro", jovens universitários que se apinham numa târde de chuva no Parque do Ibirapuera, na parte rica de São Paulo, para exercitar os cães de raça das madames? "O animal passeia, brinca e depois damos uma limpada nas patas e barriga, porque a maioria fica dentro de casas e apartamentos e pode sujar os tapetes", conta Rauní Schimpl, estudante de biologia que passeia com sete cães, duas horas, todo dia.A15minutos dali, em uma creche canina com piscina, gramado e hospedagem, os cães recebem o cuidado de babás. E refletem a necessidade de mimos dos donos. "Alguns querem que os cachorros comam frutas de sobremesa e comidas melhores que a dos funcionários", diz Paulo Carreiro, dono do lugar. Para vigiar os funcionários, há sete câmeras na casa: os donos podem acompanhar os bichos de casa, pela internet. Por que ter um cachorro, se ele passa o dia na creche ou com um passeador? Carreiro não tem resposta. 
Mas a resposta para a existência disseminada desse tipo de função servil, de cunho nitidamente classista, "é a lógica da senzala que predomina no Brasil", afirma o sociólogo Jacob Carlos Lima, pesquisador da UFSCar. "O trabalho braçal e doméstico é visto como coisa de pobre. E isso se reproduz na estrutura social." Daí as políticas públicas, como as de transporte coletivo, por exemplo, serem secundárias - por terem nítida relação de classe. "Basta ouvir as reclamações de os aeroportos parecerem uma rodoviária. São valores da cultura brasileira, na qual a desigualdade é a norma." 
Aliada à cultura de servilismo vem a inexistência de uma infraestrutura pública de serviços para o cuidado de crianças e idosos (e, parece, cães), que faz com que a entrada no mercado das classes média e alta seja acompanhada de estratégias privadas, entre elas a contratação de mensalista e babá - e, por que não, a transferência do ônus de estacionar um carro ao manobrista. "Motoristas, seguranças, babás vinculam-se aos empregos que permitem à família manter um séquito de trabalhadores domésticos", frisa Lima. O caso dos seguranças é tácito. "É necessário criar muros simbólicos para afastar as classes perigosas. Condomínios, cercas elétricas, seguranças de preto, tudo mostra a sensação de insegurança generalizada da classe média, ao passo que explicita sua sensibilidade social próxima a zero." Para manter esse comportamento classista, é necessária uma desigualdade brutal. E o Brasil é um dos líderes nesse quesito - o quarto da América Latina, atrás até do pobre Paraguai. A remuneração média no Brasil é de três salários mínimos, uma das mais baixas do mundo. Mas não é só a precariedade que incomoda. Um grau arcaico de servilismo, encoberto pela melhora na vida material, desponta na relação de patrões endinheirados (enem tanto) com seus serviçais. Por que há um exército de manobristas, diaristas, babás e outros serviçais para bajular a elite? "Porque o trabalho é mal pago", resume a economista Hildete. "Num país com melhor distribuição de renda, essas pessoas teriam funções mais produtivas." 
De 1979 a 2009, o emprego com carteira assinada entre trabalhadores domésticos cresceu, em média, 0,8% ao ano. "Se seguir esse ritmo, o Brasil levará 120 anos para incluir todos na proteção social e trabalhista", afirma o economista Mareio Pochmann, ex-presidente do Ipea. Como a dinâmica das relações de trabalho dentro das residências é distinta da existente nas empresas, as tentativas de formal ização falham, diz. Seria, por exemplo, impossível fiscalizar o cumprimento dajornada ou o pagamento de horas extras. Por isso, Pochmann propõe o fim dos contratos diretos entre as famílias e os funcionários. O ideal seria a constituição de cooperativas ou prestadoras de serviço. "É o que ocorre nos Estados Unidos e na Europa." O problema é o custo. Com a terceirização, haveria alta de 60% no custo - e 20,8% das vagas (1,9milhão) com remuneração de até meio salário mínimo mensal deixariam de existir. 
Com o crescimento da economia, porém, novos postos de trabalho surgiriam. Mesmo ganhando menos, esses trabalhadores optariam por qualquer outra ocupação, "com direitos trabalhistas assegurados e longe da lógica serviçal". 
Nesse cenário, a média dos empregados domésticos envelhece. Se antes a maioria tinha até 24 anos (60,5% em 1970), agora esses profissionais estão concentrados na faixa dos 25 a 44 anos (55,8%),segundo dados do IBGE. "Isso mostra que as jovens podem estar se escolarizando para não entrar nessa profissão", afirma Natália Fontoura, do Ipea. Concorda o autor do livro A política do precariado, o sociólogo Ruy Braga, professor da USP.Ao entrevistar centenas de operadoras de telemarketing, ele concluiu que boa parte delas era de filhas de domésticas e, mesmo ganhando menos, optava pelos call centers para fugir do estigma. "Para não seguir os passos das mães, elas aceitam ganhar menos, mas ter acesso a direitos trabalhistas e uma jornada de trabalho menor, que lhes permitem fazer uma faculdade noturna", diz Braga.
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Aos 12 anos, Cleusa Maria de Jesus deixou os oito irmãos na casinha apertada na periferia de Salvador para ser entregue pela mãe a uma família com a promessa de ser tratada como filha e ir à escola pela primeira vez. Em troca, faria o trabalho doméstico. A realidade era outra. Por sete anos a menina teve de servir aos patrões 24 horas por dia, sem remuneração, privacidade ou educação. “Ganhava os restos de comida e roupas velhas. Era semiescrava”, diz ela. Aos 20 anos, trocou de trabalho e passou a ganhar um salário (abaixo do mínimo), mas ainda vivia na casa da patroa, sem folga. Só aos 34 anos tirou férias, após descobrir o sindicato das domésticas baianas, do qual hoje é presidente. Uma história perversamente atual no Brasil, tanto nos rincões desprovidos do olhar do Estado quanto nas metrópoles, igualmente vítimas da cultura arcaica que normaliza resquícios escravistas e faz das domésticas as mucamas de hoje.
“No interior deste País, o que mais se vê é menina de 12 anos trabalhando por um prato de comida”, diz Cleusa, ao falar com a segurança de quem viveu todos os meandros do emprego doméstico no Brasil. Seu relato contraria o delírio de prosperidade a povoar as páginas de jornais, nas quais as domésticas, com carro, casa e dinheiro para gastar, viveriam em um eldorado. Muitas delas integram a chamada “nova classe média”: basta ganhar pouco mais de mil reais para ter um papel no atua­líssimo mito econômico nacional, ainda que sigam submetidas ao pior do servilismo nativo. “Tapas, empurrões, braços e pernas quebrados são denúncias comuns”, diz – situação advinda do anacronismo de uma doméstica dormir na casa do patrão. Quando o sindicato conseguiu do governo um conjunto habitacional para 80 delas, houve 500 inscrições. “É o sonho de toda doméstica que passa dia e noite a serviço do patrão ter liberdade”, diz. “Aqui, numa mansão de três pisos onde deviam trabalhar cinco empregadas, tem uma. Não há nem controle de horas trabalhadas.”
É fácil entender por quê. O Brasil é o país com o maior número de empregados domésticos no mundo, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Eram ao menos 7,2 milhões em 2010, enquanto, em 1995, havia 5,1 milhões, mais de 95% deles mulheres. No mundo, o número de empregadas também cresceu, mas nada se compara ao boom de 41% no Brasil. Hoje, de cada seis mulheres que trabalham no País, uma é doméstica. A expansão foi seguida pela alta de 47% nos salários, impacto causado pelo aumento do mínimo nos anos Lula.


Gabriel Bonis, Rodrigo Martins e Willian Viera – 23.01.2013



Passado ou futuro?

É verdade que, aos poucos, ocorrem transformações. Com a crescente passagem para o regime de diarista, aumenta o registro em carteira das que exercem funções domésticas. O problema está no vagar das mudanças.

André Singer
O Ministério Público do Rio de Janeiro abriu inquérito para investigar quatro clubes da cidade que teriam proibido o ingresso de babás que não estivessem devidamente uniformizadas de branco. A ação partiu do frei David dos Santos, da ONG Educafro, para quem, segundo "O Globo" (17/1), a medida reproduziria "o cenário das célebres gravuras de Debret, com a representação de 'sinhôs', 'sinhás', 'sinhozinhos' e suas 'mucamas', em pleno século 21".
A persistência do passado, projetando sombras sobre o futuro, inquieta, com razão, brasileiros do presente.
De acordo com a OIT (Organização Internacional do Trabalho), o Brasil é o país com o maior número de empregados domésticos do mundo. Seriam 7,2 milhões em 2010. Aqui, a instituição da trabalhadora que dorme na casa do patrão, abolida há décadas do cotidiano da vasta classe média em países mais igualitários, ainda responde pela maioria dos serviços do tipo. Segundo o Ipea, só 30% seriam diaristas. Os dados constam de reportagem da "Carta Capital" (23/1).
É verdade que, aos poucos, ocorrem transformações. Com a crescente passagem para o regime de diarista, aumenta o registro em carteira das que exercem funções domésticas. O problema está no vagar das mudanças. O economista Marcio Pochmann chega a dizer que, nesse ritmo histórico, vai demorar 120 anos para incluir todos os trabalhadores domésticos "na proteção social e trabalhista".
O caso das domésticas é ilustrativo de fenômeno mais geral. O lulismo impulsionou significativa redução da pobreza extrema. Na última segunda, no Paraná, a presidente Dilma afirmou ter tirado quase 20 milhões de pessoas de tal condição e anunciou que, em março, nenhum dos cadastrados pelo governo estará em situação de miséria. Isto é, todos contarão com, pelo menos, R$ 70 ao mês.
Boa notícia, sem dúvida, e o Executivo deve ser aplaudido por ela, uma vez que estende a mão a quem precisa de ajuda urgente. Ocorre que um indivíduo que dispõe de R$ 2,30 por dia consegue comprar pouco mais que um coco no interior do Piauí (Folha, 3/2). Saiu da emergência de não ter o que comer, mas está muito distante dos confortos que o século 21 pode proporcionar.
Em 1952, em plena época das melhores esperanças getulistas, a poeta Elizabeth Bishop afirmava simplesmente não haver classe média no Brasil. Transcorridos 60 anos, ainda estamos às voltas com o sonho de constituir uma sociedade em que a classe média seja abrangente, como pode constatar quem ler a íntegra do discurso paranaense de Dilma.
Conclusão: o Brasil caminha para a frente, mas a passo tão lento que fica difícil distinguir se, nele, constrói o futuro ou eterniza o passado.

André Singer – Cientista político e professor da USP, onde se formou em ciências sociais e jornalismo. Foi porta-voz e secretário de Imprensa da Presidência no governo Lula – 09.02.2013