segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

O jogo perigoso da desinformação

o enredo vai compondo um painel cujo resultado parece a cada dia mais claro: a demonização da política partidária, com foco muito claro em agremiações de pouca expressão eleitoral, todas coincidentemente alinhadas à esquerda do espectro político.

Luciano Martins Costa
Os três principais jornais de circulação nacional, que ainda definem a agenda institucional no país, fecham a semana com uma proeza digna de figurar na longa lista de trapalhadas da imprensa, cujo troféu mais lustroso é o caso da Escola Base. Por uma dessas ironias da história, no dia 22 do mês que vem completam-se vinte anos do noticiário que inventou um caso de pedofilia numa escola infantil de São Paulo, e o roteiro se repete perversamente.
A morte do cinegrafista Santiago Andrade, atingido na cabeça por um rojão de alta potência durante manifestação no Rio de Janeiro, tem todos os ingredientes para se tornar uma versão revista e ampliada desse que foi o marco do jornalismo espetaculoso e irresponsável no Brasil.
Os ingredientes para uma grande farsa estão reunidos: os dois jovens que foram identificados como autores do homicídio são compulsoriamente representados por um advogado que ganhou dinheiro com a defesa de milicianos e – colocados no grande liquidificador da mídia –, produzem uma sucessão de declarações que, a rigor, não poderiam ser incluídas num inquérito. E tudo que dizem – ou alguém diz que disseram – vira manchete.
Na sexta-feira (14/2), o alvo do noticiário é uma lista de doadores que contribuíram para a realização de uma festa, no dia 23 de dezembro do ano passado, intitulada “Celebração da Rua – Mais Amor, Menos Capital”. O evento foi realizado na Cinelândia, no centro do Rio, com coleta de doações em benefício de moradores de rua e vítimas das enchentes (ver aqui), juntando militantes de todos os tipos, inclusive professores e ativistas contra a Copa do Mundo. Os jornais citam vereadores, um delegado de polícia e até um juiz do Tribunal de Justiça, insinuando que eles estavam apoiando o movimento chamado Black Bloc.
Nessa corrente de declarações, suposições e especulações, a imprensa já afirmou que os atos de vandalismo que acompanham a onda de protestos no Rio de Janeiro têm o dedo do deputado Marcelo Freixo, do PSOL; depois, o Globo citou uma investigação que acusa o deputado e ex-governador do Rio Anthony Garotinho, do PR, de incentivar a violência.
Um exemplo desse jornalismo de fancaria: o título publicado no domingo (9/2) pelo portal G1, do grupo Globo (ver aqui): “Estagiário de advogado diz que ativista afirmou que homem que acendeu rojão era ligado ao deputado Marcelo Freixo”.

O fundo do poço
Nas edições de sexta-feira (14/2), os jornais fazem malabarismos para concentrar a denúncia no PSOL, PSTU e numa organização pouco conhecida chamada Frente Independente Popular.
A citação dessas organizações foi tirada de uma frase do auxiliar de limpeza Caio Silva de Souza, acusado de haver acendido o petardo que matou o cinegrafista. Segundo os jornais, o jovem disse acreditar que os partidos que levam bandeiras às manifestações são os mesmos que pagam a ativistas que se dedicam a depredações e a enfrentamentos com a polícia. Nenhuma referência às investigações sobre a participação de militantes ligados a Anthony Garotinho, ainda que tais informações tenham como fonte um inquérito oficial em vez de declarações fora de contexto.
Exatamente como no caso da Escola Base, o julgamento apressado produz desinformação: pinta-se um perfil bipolar dos dois jovens, ora como se fossem perigosos terroristas, ora como se se tratasse de duas criaturas desamparadas que foram aliciadas por forças políticas interessadas em uma espécie de “revolução bolivariana”, para usar a expressão irônica da colunista Barbara Gancia, na Folha de S. Paulo(ver aqui).
Nas duas versões, o enredo vai compondo um painel cujo resultado parece a cada dia mais claro: a demonização da política partidária, com foco muito claro em agremiações de pouca expressão eleitoral, todas coincidentemente alinhadas à esquerda do espectro político.
Pode-se discordar de objetivos e estratégias de partidos, indivíduos e organizações que se consideram artífices de uma revolução, pode-se acusá-los de tentar compensar a falta de correligionários com bumbos e palavras de ordem, mas o jogo torna-se muito perigoso quando a imprensa, hegemonicamente, atua no sentido de criminalizar o direito à manifestação pública de opiniões sobre o que quer que seja.
Nas redes sociais, esse noticiário tendencioso e irresponsável alimenta o extremismo reacionário ao ponto de inspirar chamamentos ao crime.
Se não é o fundo do poço para a imprensa, estamos quase lá.

Luciano Martins Costa – 15.02.2014
Comentário para o programa radiofônico do Observatório, 14.02.2013



A linha que define o noticiário



muitas vezes notamos como o noticiário persegue certas hipóteses que, para muitos leitores atentos, não têm muita verossimilhança.
Esses pressupostos da imprensa podem ser constatados facilmente cada vez que se abre um jornal: no alto da página que abriga as reportagens sobre o assunto principal, há um enunciado que tenta dirigir a interpretação do leitor.

Luciano Martins Costa
O noticiário sobre a morte do cinegrafista Santiago Andrade, atingido na cabeça por um rojão artesanal de grande potência durante manifestação contra as tarifas de transporte público no Rio, virou um festival de lugares-comuns e perigosas aleivosias, além de mal dissimular certas omissões da imprensa.
O núcleo central das reportagens é a declaração de um dos envolvidos, o jovem Caio Silva de Souza, segundo o qual alguns integrantes dos protestos são remunerados para promover depredações e enfrentar a polícia durante as manifestações. O advogado dos dois acusados diz ter conhecimento de que os aliciadores, ligados a políticos, fornecem material explosivo e incendiário, transporte e proteção aos ativistas mais violentos. Não cita nomes, sugere que a imprensa e a polícia investiguem as conexões de seus clientes e afirma que essa organização atua não apenas no Rio, mas também em São Paulo e outras capitais.
Autoridades da segurança pública no Rio admitem que estão em curso inquéritos que apuram o aliciamento de ativistas por parte de políticos. A Folha de S. Paulo e o Estado de S. Paulo evitam personalizar a acusação, deixando no ar a suspeita de que essa articulação se consolidou no ano passado, com o acampamento montado em frente ao apartamento onde mora o governador do Rio, Sérgio Cabral.
Na edição de quinta-feira (13/2), o Globo desarma a artilharia que vinha sendo dirigida ao PSOL, na figura do deputado estadual Marcelo Freixo, e aponta diretamente para o deputado federal Anthony Garotinho, ao afirmar que o líder do PR e provável candidato ao governo do Rio tem ligação com os principais suspeitos de instigar as depredações e agressões.
Segundo o jornal carioca, a polícia coletou depoimentos, obteve gravações de conversas telefônicas e apreendeu computadores, além de contar com informações de um investigador autônomo que teria se infiltrado no núcleo partidário supostamente dedicado a intervir nas manifestações de rua. Parte dessas informações já havia sido publicada em novembro do ano passado, ou seja, não só as autoridades como a imprensa tinham dados consistentes sobre uma provável fonte da violência.

A aventura da investigação
O leitor atento, então, se pergunta: se essa informação estava disponível, por que tanta especulação? Por que não lembrar, desde o primeiro momento, que uma linha consistente de investigação aponta, há três meses, para um determinado grupo político?
Entende-se a cautela das autoridades da segurança pública em relação a essas informações de extrema sensibilidade, que poderiam ser confundidas com artifícios de disputa eleitoral. Mas qual seria a razão da imprensa ao se deixar levar por especulações, se já dispunha de sinais claros de aliciamento por trás desses fatos?
É evidente a estratégia do advogado, ao retratar seus clientes como jovens desamparados e sem recursos, um deles até apresentado como portador de problemas psicológicos, e nada mais conveniente do que afirmar que foram manipulados por uma organização política. Os próprios jornais já haviam relatado, em muitas ocasiões, como os ataques a bancos, lojas e edifícios públicos obedecem a uma tática planejada.
Com relação à pergunta acima, pode-se observar que a imprensa perdeu o gosto pela aventura da investigação, ou seja, os jornais preferem estabelecer antes uma teoria e depois ir atrás de elementos que a comprovem. Por isso, muitas vezes notamos como o noticiário persegue certas hipóteses que, para muitos leitores atentos, não têm muita verossimilhança.
Esses pressupostos da imprensa podem ser constatados facilmente cada vez que se abre um jornal: no alto da página que abriga as reportagens sobre o assunto principal, há um enunciado que tenta dirigir a interpretação do leitor. Por exemplo, o Estado de S. Paulo coloca lá a palavra “Segurança”, o que induz sutilmente o leitor a criminalizar os movimentos de protesto. O Globo escolheu qualificar o evento como “Ataque à liberdade de expressão”. Já a Folha de S. Paulo reforça a histeria das classes médias tradicionais com o enunciado “País em protesto”.
Na vida real, as manifestações guardam uma relação apenas indireta com a questão da segurança pública; a morte do cinegrafista não significa um ataque à imprensa ou à liberdade de expressão; e, por fim, o país em protesto é um típico wishful thinking, a vontade mágica da própria Folha, manifestação de uma histeria que seria mais bem compreendida no consultório do terapeuta.



Luciano Martins Costa – 13.02.2014
Comentário para o programa radiofônico do Observatório, 13.02.2014