o enredo vai compondo
um painel cujo resultado parece a cada dia mais claro: a demonização da
política partidária, com foco muito claro em agremiações de pouca expressão
eleitoral, todas coincidentemente alinhadas à esquerda do espectro político.
Luciano Martins Costa
Os
três principais jornais de circulação nacional, que ainda definem a agenda
institucional no país, fecham a semana com uma proeza digna de figurar na longa
lista de trapalhadas da imprensa, cujo troféu mais lustroso é o caso da Escola
Base. Por uma dessas ironias da história, no dia 22 do mês que vem completam-se
vinte anos do noticiário que inventou um caso de pedofilia numa escola infantil
de São Paulo, e o roteiro se repete perversamente.
A
morte do cinegrafista Santiago Andrade, atingido na cabeça por um rojão de alta
potência durante manifestação no Rio de Janeiro, tem todos os ingredientes para
se tornar uma versão revista e ampliada desse que foi o marco do jornalismo
espetaculoso e irresponsável no Brasil.
Os
ingredientes para uma grande farsa estão reunidos: os dois jovens que foram
identificados como autores do homicídio são compulsoriamente representados por
um advogado que ganhou dinheiro com a defesa de milicianos e – colocados no
grande liquidificador da mídia –, produzem uma sucessão de declarações que, a
rigor, não poderiam ser incluídas num inquérito. E tudo que dizem – ou alguém
diz que disseram – vira manchete.
Na
sexta-feira (14/2), o alvo do noticiário é uma lista de doadores que
contribuíram para a realização de uma festa, no dia 23 de dezembro do ano
passado, intitulada “Celebração da Rua – Mais Amor, Menos Capital”. O evento
foi realizado na Cinelândia, no centro do Rio, com coleta de doações em
benefício de moradores de rua e vítimas das enchentes (ver aqui), juntando militantes de todos os
tipos, inclusive professores e ativistas contra a Copa do Mundo. Os jornais
citam vereadores, um delegado de polícia e até um juiz do Tribunal de Justiça,
insinuando que eles estavam apoiando o movimento chamado Black Bloc.
Nessa
corrente de declarações, suposições e especulações, a imprensa já afirmou que
os atos de vandalismo que acompanham a onda de protestos no Rio de Janeiro têm
o dedo do deputado Marcelo Freixo, do PSOL; depois, o Globo citou
uma investigação que acusa o deputado e ex-governador do Rio Anthony Garotinho,
do PR, de incentivar a violência.
Um
exemplo desse jornalismo de fancaria: o título publicado no domingo (9/2) pelo
portal G1, do grupo Globo (ver aqui): “Estagiário de advogado diz que
ativista afirmou que homem que acendeu rojão era ligado ao deputado Marcelo
Freixo”.
O
fundo do poço
Nas
edições de sexta-feira (14/2), os jornais fazem malabarismos para concentrar a
denúncia no PSOL, PSTU e numa organização pouco conhecida chamada Frente
Independente Popular.
A
citação dessas organizações foi tirada de uma frase do auxiliar de limpeza Caio
Silva de Souza, acusado de haver acendido o petardo que matou o cinegrafista.
Segundo os jornais, o jovem disse acreditar que os partidos que levam bandeiras
às manifestações são os mesmos que pagam a ativistas que se dedicam a
depredações e a enfrentamentos com a polícia. Nenhuma referência às
investigações sobre a participação de militantes ligados a Anthony Garotinho,
ainda que tais informações tenham como fonte um inquérito oficial em vez de
declarações fora de contexto.
Exatamente
como no caso da Escola Base, o julgamento apressado produz desinformação:
pinta-se um perfil bipolar dos dois jovens, ora como se fossem perigosos
terroristas, ora como se se tratasse de duas criaturas desamparadas que foram
aliciadas por forças políticas interessadas em uma espécie de “revolução
bolivariana”, para usar a expressão irônica da colunista Barbara Gancia, na Folha
de S. Paulo(ver aqui).
Nas
duas versões, o enredo vai compondo um painel cujo resultado parece a cada dia
mais claro: a demonização da política partidária, com foco muito claro em
agremiações de pouca expressão eleitoral, todas coincidentemente alinhadas à
esquerda do espectro político.
Pode-se
discordar de objetivos e estratégias de partidos, indivíduos e organizações que
se consideram artífices de uma revolução, pode-se acusá-los de tentar compensar
a falta de correligionários com bumbos e palavras de ordem, mas o jogo torna-se
muito perigoso quando a imprensa, hegemonicamente, atua no sentido de
criminalizar o direito à manifestação pública de opiniões sobre o que quer que
seja.
Nas
redes sociais, esse noticiário tendencioso e irresponsável alimenta o
extremismo reacionário ao ponto de inspirar chamamentos ao crime.
Se não
é o fundo do poço para a imprensa, estamos quase lá.
Luciano Martins Costa – 15.02.2014
Comentário para o programa radiofônico do Observatório,
14.02.2013
IN Observatório de Imprensa, ed. 785 – http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/o_jogo_perigoso_da_desinformacao
A linha que define o noticiário
muitas
vezes notamos como o noticiário persegue certas hipóteses que, para muitos
leitores atentos, não têm muita verossimilhança.
Esses
pressupostos da imprensa podem ser constatados facilmente cada vez que se abre
um jornal: no alto da página que abriga as reportagens sobre o assunto principal,
há um enunciado que tenta dirigir a interpretação do leitor.
Luciano Martins Costa
O
noticiário sobre a morte do cinegrafista Santiago Andrade, atingido na cabeça
por um rojão artesanal de grande potência durante manifestação contra as
tarifas de transporte público no Rio, virou um festival de lugares-comuns e
perigosas aleivosias, além de mal dissimular certas omissões da imprensa.
O
núcleo central das reportagens é a declaração de um dos envolvidos, o jovem
Caio Silva de Souza, segundo o qual alguns integrantes dos protestos são
remunerados para promover depredações e enfrentar a polícia durante as
manifestações. O advogado dos dois acusados diz ter conhecimento de que os
aliciadores, ligados a políticos, fornecem material explosivo e incendiário,
transporte e proteção aos ativistas mais violentos. Não cita nomes, sugere que
a imprensa e a polícia investiguem as conexões de seus clientes e afirma que
essa organização atua não apenas no Rio, mas também em São Paulo e outras
capitais.
Autoridades
da segurança pública no Rio admitem que estão em curso inquéritos que apuram o
aliciamento de ativistas por parte de políticos. A Folha de S. Paulo e
o Estado de S. Paulo evitam personalizar a acusação, deixando
no ar a suspeita de que essa articulação se consolidou no ano passado, com o
acampamento montado em frente ao apartamento onde mora o governador do Rio,
Sérgio Cabral.
Na
edição de quinta-feira (13/2), o Globo desarma a artilharia
que vinha sendo dirigida ao PSOL, na figura do deputado estadual Marcelo
Freixo, e aponta diretamente para o deputado federal Anthony Garotinho, ao
afirmar que o líder do PR e provável candidato ao governo do Rio tem ligação
com os principais suspeitos de instigar as depredações e agressões.
Segundo
o jornal carioca, a polícia coletou depoimentos, obteve gravações de conversas
telefônicas e apreendeu computadores, além de contar com informações de um
investigador autônomo que teria se infiltrado no núcleo partidário supostamente
dedicado a intervir nas manifestações de rua. Parte dessas informações já havia
sido publicada em novembro do ano passado, ou seja, não só as autoridades como
a imprensa tinham dados consistentes sobre uma provável fonte da violência.
A
aventura da investigação
O
leitor atento, então, se pergunta: se essa informação estava disponível, por
que tanta especulação? Por que não lembrar, desde o primeiro momento, que uma
linha consistente de investigação aponta, há três meses, para um determinado
grupo político?
Entende-se
a cautela das autoridades da segurança pública em relação a essas informações
de extrema sensibilidade, que poderiam ser confundidas com artifícios de
disputa eleitoral. Mas qual seria a razão da imprensa ao se deixar levar por
especulações, se já dispunha de sinais claros de aliciamento por trás desses
fatos?
É
evidente a estratégia do advogado, ao retratar seus clientes como jovens
desamparados e sem recursos, um deles até apresentado como portador de problemas
psicológicos, e nada mais conveniente do que afirmar que foram manipulados por
uma organização política. Os próprios jornais já haviam relatado, em muitas
ocasiões, como os ataques a bancos, lojas e edifícios públicos obedecem a uma
tática planejada.
Com
relação à pergunta acima, pode-se observar que a imprensa perdeu o gosto pela
aventura da investigação, ou seja, os jornais preferem estabelecer antes uma
teoria e depois ir atrás de elementos que a comprovem. Por isso, muitas vezes
notamos como o noticiário persegue certas hipóteses que, para muitos leitores
atentos, não têm muita verossimilhança.
Esses
pressupostos da imprensa podem ser constatados facilmente cada vez que se abre
um jornal: no alto da página que abriga as reportagens sobre o assunto principal,
há um enunciado que tenta dirigir a interpretação do leitor. Por exemplo, o Estado
de S. Paulo coloca lá a palavra “Segurança”, o que induz sutilmente o
leitor a criminalizar os movimentos de protesto. O Globo escolheu
qualificar o evento como “Ataque à liberdade de expressão”. Já a Folha
de S. Paulo reforça a histeria das classes médias tradicionais com o
enunciado “País em protesto”.
Na
vida real, as manifestações guardam uma relação apenas indireta com a questão
da segurança pública; a morte do cinegrafista não significa um ataque à
imprensa ou à liberdade de expressão; e, por fim, o país em protesto é um
típico wishful thinking, a vontade mágica da própria Folha,
manifestação de uma histeria que seria mais bem compreendida no consultório do
terapeuta.
Luciano Martins Costa – 13.02.2014
Comentário para o programa radiofônico do Observatório,
13.02.2014
IN Observatório de Imprensa, ed. 785 – http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/a_linha_que_define_o_noticiario