Se existe algum bem na polarização das últimas
eleições é que ela mostra os conflitos reais que racham a sociedade
contemporânea brasileira: a contradição entre as classes sócias no projeto de
construção de uma sociedade para 20% e o projeto inconcluso e incipiente de um
Brasil para a maioria da população. A segunda “abolição da escravatura” - hoje
não mais de uma raça, mas de uma grande classe de excluídos - proposta por
Joaquim Nabuco há mais de cem anos é hoje mais atual que nunca. (...) A última década de crescimento econômico
brasileiro, depois de 30 anos de estagnação, foi obra do esforço e do trabalho
da parte de baixo da população, que logrou dinamizar a economia e a sociedade
como um todo. Com um mínimo de estímulo, foram as classes populares e
voluntariosas que encheram de estímulo e vigor uma sociedade estagnada e
decadente.
Jessé de Souza
O Brasil de hoje está diante de nova escolha
histórica que pode decidir seu futuro.
Essa escolha se refere a
dois modelos de sociedade distintos. O primeiro, que ainda é o dominante, foi
gestado em outro momento decisivo de nossa história, um desses momentos raros
em que a escolha entre caminhos alternativos possíveis se realiza e se congela
depois em uma espécie de “destino” para as gerações futuras. Esse momento foi o
golpe de 1964 e das forças que o apoiaram, que optou por construir um modelo de
moderna sociedade de consumo para 20% da população. Essa opção histórica foi
consolidada nos anos 1990 com o governo FHC.
O segundo modelo
representa o anseio das forças derrotadas em 1964 por uma sociedade mais
inclusiva. Modelo esse que vingou na esfera política nos últimos 12 anos, ainda
que longe de deter a hegemonia na esfera pública que constrói a “opinião
pública” e, portanto, não detém o efetivo controle da prática econômica e social.
Afinal, existem limites claros para um Estado reformador em meio a uma sociedade
conservadora. Ainda que esse segundo modelo tenha conseguido incluir, de modo
precário e instável, outros 20% adicionais da população no mercado de consumo e
reduzido formas extremas de miséria material, seu desenvolvimento se deu de
modo errático, incompleto, sem efetivo planejamento e ao sabor das conjunturas.
A fragilidade das conquistas realizadas pelo segundo modelo é explicada pela
manutenção da força social e econômica do modelo anterior, as quais se
mantiveram intocadas mesmo depois da eventual perda do poder político.
Para que compreendamos a
força inabalada do modelo dominante, mesmo com a perda eventual do poder
político, é preciso compreender como funciona a íntima e orgânica relação entre
economia e a política. A pedra de toque para que possamos perceber esse jogo,
sempre mantido cuidadosamente nas sombras, é o mote da “corrupção e
ineficiência estatal” contraposta à suposta virtude e eficiência do mercado.
Essa é, na realidade, a “única bandeira” de legitimação do modelo excludente de
sociedade ainda no poder real. Esse é, afinal, o único pretexto por meio do
qual os interesses mais privados do 1% mais rico podem ser travestidos em suposto
interesse geral.
Na verdade, o mercado
capitalista, aqui e em qualquer lugar, sempre foi uma forma de “corrupção
organizada”, começando com o controle dos mais ricos acerca da própria
definição de crime: criminoso passa a ser o funcionário do Estado ou o batedor
de carteira pobre enquanto o especulador de Wall Street – a matriz da Avenida
Paulista - que frauda balanços de empresas e países e arruína o acionista
minoritário embolsa, hoje mais que antes da crise, bônus milionários.
Enquanto os primeiros
vão para a cadeia, o segundo, que às vezes arrasa a economia de países
inteiros, ganha foto na capa da Time como financista do ano.
Quem é que ganha, na
verdade, com a corrupção tornada legal do mercado e celebrada como mérito? É
isso que o cidadão feito de tolo não vê.
(...)
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Jessé de Souza – Doutor em Sociologia pela Universidade de
Heidelberg, na
Alemanha, e professor
titular da Universidade Federal Fluminense – 25.10.2014
IN O Estado de São
Paulo.