sábado, 20 de dezembro de 2014

Licença para matar


Criado sob o manto da repressão, o auto de resistência se transformou numa espécie de salvo conduto para matar, que ainda perdura, 45 anos após sua invenção e 29 anos após a volta da democracia. O que se viu ao longo de todos esses anos foi a ampliação do uso do instrumento, a ponto de, em 2014, deixar de ser exceção para virar regra. Hoje, as vítimas prioritárias do auto de resistência não são mais os estudantes da geração de 68, os "terroristas" dos anos de chumbo, mas a juventude negra, pobre e moradora das periferias.

Paulo Teixeira
A pena de morte foi abolida da lei brasileira com a Proclamação da República, em 1889. O último brasileiro punido oficialmente com a pena capital foi o escravo Francisco, no município de Pilar, no interior de Alagoas, em 28 de abril de 1876, condenado pelo assassinato de um coronel e sua esposa. Faz 138 anos, portanto, que a Justiça não manda ninguém para a forca, como aconteceu com Francisco, nem para a guilhotina, a fogueira, a cadeira elétrica ou a injeção letal. Na prática, no entanto, a pena de morte jamais deixou de ser adotada no Brasil.

Centenas morreram torturados, sob a responsabilidade do Estado, nos dois períodos de ditadura que vitimaram o país no século passado: o Estado Novo (1937-1945) e o regime militar (1964-1985). Outras centenas ainda morrem, todos os anos, sob tortura ou em execuções sumárias, por iniciativa de maus policiais, aos quais interessa menos cumprir a lei do que "matar vagabundo" ou "fazer justiça com as próprias mãos". Esses mesmos agentes contratados pelo Estado para promover a segurança pública nem sempre se sujeitam à mesma legislação pela qual deveriam zelar. Pressão, ódio, medo, euforia, destempero ou despreparo entram na conta do extermínio. Mas é sobretudo a certeza da impunidade que lhes permite puxar o gatilho – duas, três, oito vezes – e eliminar um suspeito, muitas vezes alvejado nas costas ou na nuca, e voltar ao trabalho no dia seguinte, impunes e impávidos, para serem recebidos com sorrisos cúmplices do chefe e dos colegas.
Essa certeza de impunidade chama-se auto de resistência.
O auto de resistência surgiu no antigo estado da Guanabara, hoje Rio de Janeiro, em outubro de 1969, como um instrumento administrativo a ser utilizado no registro de civis mortos em confronto com a polícia, especificamente quando houvesse resistência à prisão. A hipótese era de que, ao oferecer resistência, o suposto bandido poria em risco a vida do policial, o que tornaria legítimo o uso de força letal. Em outras palavras, o policial agiria em legítima defesa ao executar um suspeito que resiste. E, se agiu em legítima defesa para conter um criminoso que resistiu à prisão, não deveria se sujeitar aos trâmites habituais a que respondem os civis acusados de homicídio. Ou seja: ocorrência em que houve auto de resistência, culminando ou não com a morte da vítima, não é investigada. Nos anos seguintes, muitos opositores da ditadura tombaram por "resistir à prisão" – nus, encarcerados, com fios elétricos amarrados nas partes íntimas.
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Paulo Teixeira
 – Deputado federal pelo PT de São Paulo – 26.11.2014.
IN Revista Teoria e Debate, ed. 130.