segunda-feira, 31 de março de 2014

No golpe dos empresários, a “mais beneficiada foi a Globo”


Fábio Venturini tratou de “como a economia nacional foi colocada em função das grandes corporações nacionais, ligadas às corporações internacionais e o Estado funcionando como grande financiador  e impulsionador deste desenvolvimento, desviando de forma legalizada — com leis feitas para isso — o dinheiro público para a atividade empresarial privada”.

Luiz Carlos Azenha
Fabio Venturini fez o mestrado na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo sobre os empresários e o golpe de 64. Está concluindo o doutorado sobre os empresários e a Constituição de 1988.
Ele esmiuçou os detalhes de “como a economia nacional foi colocada em função das grandes corporações nacionais, ligadas às corporações internacionais e o Estado funcionando como grande financiador  e impulsionador deste desenvolvimento, desviando de forma legalizada — com leis feitas para isso — o dinheiro público para a atividade empresarial privada”. Segundo ele, é isto o que nos afeta ainda hoje, já que os empresários conseguiram emplacar a continuidade das vantagens na Carta de 88.
Venturini cita uma série de empresários que se deram muito bem durante a ditadura militar, como o banqueiro Ângelo Calmon de Sá (ligado a Antonio Carlos Magalhães, diga-se) e Paulo Maluf (empresário que foi prefeito biônico, ou seja, sem votos, de São Paulo).
Por outro lado, apenas dois empresários se deram muito mal com o golpe de 64: Mário Wallace Simonsen, um dos maiores exportadores de café, dono da Panair e da TV Excelsior; e Fernando Gasparian. Ambos eram nacionalistas e legalistas. A Excelsior, aliás, foi a única emissora que chamou a “Revolução” dos militares de “golpe” em seu principal telejornal.
Sobre as vantagens dadas aos empresários: além da repressão desarticular o sindicalismo, com intervenções, prisões e cassações, beneficiou grupos como o Ultra, de Henning Albert Boilesen, alargando prazo para pagamento de matéria prima ou recolhimento de impostos, o que equivalia a fazer um empréstimo sem juros, além de outras vantagens. Boilesen, aliás, foi um dos que fizeram caixa para a tortura e compareceu pessoalmente ao DOI-CODI para assistir a sessões de tortura. Foi justiçado por guerrilheiros.
Outros empresários estiveram na mira da resistência, como Octávio Frias de Oliveira, do Grupo Folha, que apoiou o golpe. Frias e seu sócio Carlos Caldeira ficaram com o espólio do jornal que apoiou João Goulart,  Última Hora, além de engolir o Notícias Populares e, mais tarde, ficar com parte do que sobrou da Excelsior. Porém, o que motivou o desejo da guerrilha de justiçar Frias foi o fato de que o Grupo Folha emprestou viaturas de distribuição de jornal para campanas da Operação Bandeirante (a Ultragás, do Grupo Ultra, fez o mesmo com seus caminhões de distribuição de gás). Mais tarde, a Folha entregou um de seus jornais, a Folha da Tarde, à repressão.
“Se uma empresa foi beneficiada pela ditadura, a mais beneficiada foi a Globo, porque isso não acabou com a ditadura. Roberto Marinho participou da articulação do golpe, fez doações para o Ipes [Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais, que organizou o golpe]. O jornal O Globo deu apoio durante o golpe. Em 65, o presente, a contrapartida foi a concessão dos canais de TV, TV Globo Canal 4 do Rio de Janeiro e Canal 5 São Paulo”, diz Fabio Venturini.
“Porém, na década de 70, a estrutura de telecomunicações era praticamente inexistente no Brasil e foi totalmente montada com dinheiro estatal, possibilitando entre outras coisas ter o primeiro telejornal que abrangesse todo o território nacional, que foi o Jornal Nacional, que só foi possível transmitir nacionalmente por causa da estrutura construída com dinheiro estatal”, afirma o pesquisador.
“Do ponto-de-vista empresarial, sem considerar o conteúdo, a Globo foi a que mais lucrou”, continua, já que em 1985, no ocaso da ditadura, “Roberto Marinho era o dono da opinião pública”.
Segundo Fabio Venturini, na ditadura imposta a partir de 1964 os militares se inspiraram na ditadura de Getúlio Vargas.
Lembra que, naquela ditadura, o governo teve vários problemas para controlar um aliado, o magnata das comunicações, Assis Chateaubriand.
“No golpe de 64 o Assis Chateaubriand já estava doente, o grupo Diários Associados estava em decadência. O Roberto Marinho foi escolhido para substituir Assis Chateaubriand. Tinha o perfil de ser uma pessoa ligada ao poder. Tendo poder, tendo benefício, ele estava lá. A Globo foi pensada como líder de um aparato de comunicação para ser uma espécie de BBC no Brasil. A BBC atende ao interesse público. No Brasil foi montada uma empresa privada, de interesse privado, para ser porta-voz governamental. Se a BBC era para fiscalizar o Estado, a Globo foi montada para evitar a fiscalização do Estado. Tudo isso tem a contrapartida, uma empresa altamente lucrativa, que se tornou uma das maiores do mundo [no ramo]“, conclui.
Venturini fala em pelo menos dois mistérios ainda não esclarecidos da ditadura: os dois incêndios seguidos na TV Excelsior, em poucos dias, e a lista dos empresários que ingressaram no DOI-CODI para ver sessões de espancamento ou conversar com o comandante daquele centro de torturas, Carlos Alberto Brilhante Ustra.
Na entrevista abaixo, o pesquisador também fala do papel central no golpe desempenhado por Julio de Mesquita Neto, do Estadão [leia aqui reportagem da revista Fortune, de setembro de 64, que deixa isso claro].
Comenta a tese, muito comum na Folha de S. Paulo, de que houve um contragolpe militar para evitar um regime comunista, o que chama de “delírio” [leia aqui como o PCB havia assumido, na época, compromisso com a via eleitoral].
Venturini também fala do papel de Victor Civita, do Grupo Abril, que “tinha simpatia pela ordem” e usou suas revistas segmentadas para fazer a cabeça de empresários, embora não tenha conspirado.
Finalmente, explica a relação dos empresários com as nuances da ditadura pós-golpe. Um perfil liberal, pró-americano, em 64; um perfil ‘desenvolvimentista’, mais nacionalista, a partir de 67/68.


Luiz Carlos Azenha – 27.03.2014




Operação ditabranda a todo vapor

a sensação que eu tenho é de que se deflagrou uma verdadeira “operação ditabranda”, na qual os escribas da mídia fazem um joguinho sujo: tentam relativizar a ditadura.

Miguel do Rosário
São todos muito espertos, muito astutos, muito inteligentes. Os donos do dinheiro sabem escolher a dedo aqueles que merecem espaço em seus jornais.
Alguns são tão espertos que é possível ler seus textos de duas maneiras. Aqueles que são contra a ditadura, lêem-nos como uma crítica a ditadura. Os que são a favor da ditadura, lêem como um elogio à mesma.
É preciso tirar o chapéu. Eles merecem os altos salários que ganham!
Todos eles tomam extremo cuidado, naturalmente, quando falam do golpe. Ninguém quer se contra a democracia. Não queriam nem em 1964, tanto é que deram o golpe em nome da “democracia”!
Mas a sensação que eu tenho é de que se deflagrou uma verdadeira “operação ditabranda”, na qual os escribas da mídia fazem um joguinho sujo: tentam relativizar a ditadura.
Primeiro foi o Jabor, dizendo que o golpe de 64 foi uma “porrada necessária”.
Depois veio Elio Gaspari, com um discurso um pouco mais disfarçado, porém conseguindo, com incrível eficácia, enfiar uma associação de Dilma com a ditadura.
Gaspari é mestre na técnica de dar um significado duplo ao texto: pode-se ler o texto da esquerda para a direita, ou da direita para a esquerda.
Por exemplo, ele escreve que “hoje as duas visões sobrevivem e no ano passado a doutora Dilma flertou com uma Constituinte exclusiva com adereços plebiscitários”.
Adereços plebiscitários?
O dispositivo do plebiscito está na Constituição e deveria ser mais usado. É a voz do povo. Volto a tirar o chapéu para Gaspari: a expressão “adereço plebiscitário” usa, de forma brilhante, a técnica de transformar democracia em golpe e golpe em democracia.
Nesta sexta-feira, a Folha publica um artigo de Carlos Chagas (que é pai da Helena Chagas, ex-Secom, mas prefiro acreditar que isso não quer dizer nada) que me pareceu um exemplo magnífico de astúcia.
É um artigo tão inteligente! O título é tipicamente “ditabranda”: Não foi bem assim como dizem hoje. Mas até aí tudo bem. Nada é bem assim como dizem hoje. É um raciocínio coringa, que pode ter qualquer sentido.
Chagas vai criticando a ditadura, elogiando a democracia, até que encerra com uma pirueta bizarra, fazendo um elogio babão e “patriótico” ao golpe:
“O mundo não está dividido entre mocinhos e bandidos, mesmo que muitos sejam mais bandidos do que mocinhos. Apesar de tudo, o Brasil continua. Os militares cometeram erros grotescos. Execráveis. Mas também contribuíram para esse verdadeiro milagre que é a preservação da unidade nacional. Eles e quantos existiram antes e quantos vieram e virão depois”.
O mundo não está dividido entre mocinhos e bandidos? Ah, o Homer Simpson vai adorar ler isso! Os militares “contribuíram para esse verdadeiro milagre que é a preservação da unidade nacional”.
Permitam-me uma manifestação bem vulgar: ?????????????????
O que isso quer dizer?
Isso me lembra muito um rapaz bobinho que eu conheci uma vez, que veio com o papo de que “Hitler” construiu muitos trens. Ele não era exatamente um rapaz de “direita”. Não tinha ideologia nenhuma. Era um programador que tinha lido “Minha Luta”, do Hitler, e achado “legal”. Depois procurou alguns textos elogiosos ao ditador alemão e engoliu.
Ainda na sexta-feira, outro colunista da Folha, Reinaldo Azevedo, completa o show. Azevedo tem seu estilo próprio, de macaco numa loja de cristais. Não tem sutileza nenhuma. Mas dá conta do recado. Ele encerra o texto chamando Goulart de “golpista incompetente”.
Ora, se Goulart era “golpista”, então os que o derrubaram eram “democratas”.
Pelo jeito, teremos que esperar mais cinquenta anos para que a ditadura não seja relativizada.


Miguel do Rosário – 29.03.2014


sexta-feira, 28 de março de 2014

Anatomia da crise Ucraniana: entender as causas, propor soluções.

 

Parece que as causas para a crise ucraniana são mais complexas. Deve-se considerar, pelo menos, três fatores.  Em primeiro lugar, a incapacidade do governo Yanukovich de resolver os problemas de transição para uma economia capitalista que o país enfrenta desde sua independência, em 1991, e que foi agravado pelas promessas de ganhos econômicos não cumpridas do período pós-revolução laranja de 2004. (...) A segunda causa diz respeito à uma tendência em toda a Europa, a ascensão de movimentos nacionalistas, com feições nazi-fascistas. Na Ucrânia essa tendência se materializou no partido Svoboda, que alcançou em torno de 10% do apoio da população nas últimas eleições parlamentares. (...) Por último, deve-se ressaltar o papel da UE, que estimulou a população da Ucrânia a tomar as ruas após o fracasso das negociações de adesão do país a um acordo de livre-comércio com a Europa. Essa postura de ingerência externa da UE nos assuntos ucranianos, explícitos nas inúmeras declarações de Durão Barroso, acendeu o pavio para a explosão de uma bomba.


Fabiano Mielniczuk
As causas da crise
A situação da Ucrânia é séria. Muitos falam do risco de uma guerra civil que leve à divisão do país entre as áreas ocidentais e a parte leste, habitada por russos. Esse risco agora é mais iminente, com a ocupação da Criméia por grupos paramilitares pró-Russia e a realização de um plebiscito para que a população decida se a região deseja ser anexada pela Rússia ou não.
Os analistas que apóiam a aproximação da Ucrânia à UE afirmam que o pano de fundo para os protestos que levaram ao Golpe que derrubou Yanokovich foi a situação econômica do país. Com uma mentalidade dos anos 1990, reiteram que a única alternativa à Ucrânia seria a de aprofundar os laços econômicos com a UE, liberalizando (ou melhor, modernizando, no discurso oficial) sua economia e promovendo maior interdependência com a Europa como forma de fugir das chantagens econômicas russas. Entretanto, após o colapso econômico de 2009, quando a economia recuou 19% em razão da crise mundial de 2008, a Ucrânia tem tido níveis de crescimento compatíveis com os dos demais países europeus. Por outro lado, parece pouco provável que depois do vergonhoso resultado eleitoral de 2010, no qual o candidato à reeleição e líder da Revolução Laranja, o pró-ocidental Victor Yushenko, obteve aprox. 5% de votos no primeiro turno, a população da Ucrânia fosse optar por uma ruptura institucional violenta que colocasse no poder líderes que vêem o FMI como salvação para a economia do país (o mesmo FMI que rompeu um acordo de empréstimo de 15 bilhões de dólares com a Ucrânia, em 2010, após Yushenko aumentar o salário e as pensões dos ucranianos).
Parece que as causas para a crise ucraniana são mais complexas. Deve-se considerar, pelo menos, três fatores.  Em primeiro lugar, a incapacidade do governo Yanukovich de resolver os problemas de transição para uma economia capitalista que o país enfrenta desde sua independência, em 1991, e que foi agravado pelas promessas de ganhos econômicos não cumpridas do período pós-revolução laranja de 2004. A falta de transparência na gestão do país e um ambiente corrupto para os negócios também entram nesse cenário de problemas não resolvidos. A segunda causa diz respeito à uma tendência em toda a Europa, a ascensão de movimentos nacionalistas, com feições nazi-fascistas. Na Ucrânia essa tendência se materializou no partido Svoboda, que alcançou em torno de 10% do apoio da população nas últimas eleições parlamentares. Com um discurso baseado na xenofobia e na pureza nacional, contra russos e contra judeus, os adeptos desse partido fizeram parte de uma facção chamada “setor de direita”, que esteve na vanguarda violenta dos movimentos na praça Euromaiden. Por último, deve-se ressaltar o papel da UE, que estimulou a população da Ucrânia a tomar as ruas após o fracasso das negociações de adesão do país a um acordo de livre-comércio com a Europa. Essa postura de ingerência externa da UE nos assuntos ucranianos, explícitos nas inúmeras declarações de Durão Barroso, acendeu o pavio para a explosão de uma bomba.

EUA e UE x Rússia, e a Ucrânia no meio…
Depois de ter acendido o pavio, a UE foi ingênua (ou cínica) ao negociar com opositores que não tinham legitimidade frente aos extremistas. Durante as manifestações, a extrema direita tomou conta da situação e passou a expulsar manifestantes pacíficos dos prédios ocupados. A facção chamada “setor de direita” foi fundamental para isso. Existem, inclusive, laços dos nacionalistas ucranianos com grupos paramilitares que lutaram na Chechênia contra os russos, e a confirmação de que muitos “manifestantes” são paramilitares treinados. Esses grupos não tinham outro objetivo senão a derrubada do presidente.
Ademais, a União Européia e os Estados Unidos agiram de maneira precipitada ao reconhecerem um governo que derrubou um presidente democraticamente eleito e que é formado, em boa parte, por esses extremistas. A justificativa para tal posição se fundava na alegação de que o governo de Yanukovich havia sido responsável pela morte dos manifestantes em Kiev. No dia 05 de Março, o vazamento de uma gravação telefônica entre o Ministro das Relações Exteriores da Estônia, Sr. Urmas Paet, e a chefe das Relações Exteriores da UE, Sra. Catherine Asthon, deixa claro que os Europeus sabiam que o início dos tiros feitos por snippers partiram de grupos relacionados às milícias ultra-nacionalistas, os quais buscavam como alvo tanto as forças policiais quanto os manifestantes. Esses mesmos grupos fazem parte do governo provisório na Ucrânia. Isso reforça a alegação dos russos de que os acontecimentos de Kiev foram protagonizados por grupos que ameaçam a segurança dos russos no país e justificaria, portanto, a ocupação da Criméia. Em outras regiões da Ucrânia com maioria russa, como Donetsk e Kharkiv, já ocorrem manifestações populares pró-Rússia e, caso haja reação ucraniana, a possibilidade de uma intervenção russa em outras partes do país bastante real.
Os europeus e norte-americanos acusam os russos de serem incoerentes, de defenderem o princípio da não-intervenção em outros casos e de o desrespeitarem no caso da Ucrânia. Todavia, as comparações são qualitativamente desmedidas. Vejamos as últimas três intervenções condenadas pelos russos e lideradas pelos ocidentais.
A primeira foi baseada em mentiras – supostas ligações de Saddam com a Al Qaida e a existência de armas de destruição em massa foram comprovadamente fabricadas por setores do governo norte-americano para legitimar a invasão do Iraque, em 2003. A segunda, na Líbia, decorreu de uma divergência na interpretação de uma resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas que, segundo os russos, não autorizava a intervenção, mas mesmo assim ela foi levada adiante. O próprio fato de haver uma resolução com apoio da Rússia indica um certo grau de cooperação entre as potências para a resolução da Crise na Líbia. Na visão dos russos, sua boa vontade foi retribuída com traição por parte do Ocidente. Por último, a intervenção da Síria não ocorreu por conta da oposição russa e da proposição de um plano para a retirada das armas químicas do território sírio (posteriormente, a justificativa utilizada pelo presidente Obama para que houvesse uma intervenção armada, de que o governo de Bashar Al Assad havia utilizado armas químicas contra os rebeldes, foi comprovada falsa por um estudo de especialistas do MIT). De todo modo, nesses três casos, não existia um número significativo de cidadãos, sejam europeus, sejam norte-americanos, que estivessem em risco e pudessem justificar uma atitude belicosa contra um Estado soberano. Por trás da defesa de valores universais que legitimassem intervenções humanitárias, existiam também interesses econômicos bastante palpáveis, relacionados a fontes de energia (petróleo e gás).
No caso da Rússia, também existem interesses econômicos (gás) e geopolíticos (base de Sevastopol) em jogo, mas os termos nos quais essas questões tinham sido resolvidas nos últimos anos foram altamente favoráveis à Rússia, e não serviriam de motivação para uma ação militar. Aqui, ao que parece, as justificativas de intervenção humanitária não são vagas: existem quase 9 milhões de russos em território ucraniano, que viram sua língua ser rebaixada do status de idioma oficial do país pelo parlamento do pós-golpe, e que temem a presença de nacionalistas anti-russos no governo provisório. A atitude russa é a materialização da promessa de que nenhum russo fora do território do seu país depois do fim da URSS seria tratado como cidadão de segunda classe. De fato, existiam em torno de 25 milhões de russos fora da Rússia depois do colapso da União Soviética, e a maioria deles foram desprovidos de seus direitos básicos (propriedade, idioma, emprego, voto, etc…) durante uma boa parte desse período. Na época, a fraqueza do governo de Ieltsin e seu alinhamento incondicional com o Ocidente impossibilitaram qualquer atitude proativa de Moscou para garantir esses direitos. Embora tenha sido bastante lenta, a incorporação dos países do leste na união Européia contribuiu para atenuar essa discriminação, mas não para terminar definitivamente com ela. Pelo contrário, a UE aceitou a aberração jurídica criada pela Letônia e Estônia de chamar os russos que viviam nesses países desde a II Guerra Mundial de “não-cidadãos”, ou seja, pessoas que possuem todos os direitos dos cidadãos, mas que não possuem direito de votar ou de ocuparem cargos públicos (sim, esse é o status no passaporte dessas pessoas). Por conta desse precedente, a UE não tem legitimidade para garantir o respeito às minorias russas na Ucrânia, na visão da Rússia. Por esses motivos, uma possível intervenção russa na Ucrânia não pode ser comparada às intervenções ocidentais em outros países.

E agora, o que fazer?
Tendo em vista o que foi exposto, a afirmação que Kissinger de que a demonização de Putin por parte dos Estados Unidos serve, na verdade, como um álibi para a inexistência de uma política externa para a Rússia está correta. De fato, os interesses russos (e dos russos que habitam a Ucrânia) não foram levados em consideração pelos ocidentais. Os russos reagiram de maneira previsível para aqueles que acompanham a vida política do país e enxergam a Rússia como ela é. Já aqueles que tendem a olhar para a Rússia e enxergar “o expansionismo da antiga União Soviética,” paradoxalmente, não conseguiram vislumbrar que a possibilidade de expansão da Rússia no caso da Ucrânia era real. Um primeiro passo necessário para a resolução da crise, nesse sentido, seria o de colocar em diálogo interlocutores ocidentais que saibam enxergar uma realidade diferente e reconhecer que os interesses da Rússia são legítimos, bem como os dos russos que vivem em território ucraniano.
Um segundo passo seria o de negociar um governo de transição na Ucrânia, que não tenha a participação de partidos vinculados aos atos de violência cometidos por paramilitares armados e que desencadearam a resposta armada das forças de policiais ucranianas. Para tanto, a UE deve reconhecer o erro de ter promovido a versão de que a derrubada de Yanukovich foi legítima por se tratar de um presidente que havia utilizado a força contra os manifestantes. Isso implicaria a retirada do Svoboda do governo de transição (que, aliás, está a frente do ministério de defesa) e o ingresso de alguns dos antigos governadores das regiões russas do país no governo. Obviamente, essa medida deve ser seguida da anulação da lei que retira do russo o status de segunda língua oficial do país.
O terceiro passo é mais delicado, e consistiria em um acordo para adiar tanto o plebiscito da região autônoma da Criméia, previsto para o dia 16 de Março, quando as eleições para a presidência da Ucrânia, previstas para o dia 25 de maio. Caso os russos da Criméia optem pela anexação à Rússia, será praticamente impossível evitar a formalização da ocupação russa. Em contrapartida, esse evento levará ao crescimento eleitoral do Svoboda na disputa presidencial. Nesse cenário, a posterior anexação militar pela Rússia das outras regiões habitadas por russos será concretizada, e a reação do governo nacionalista levará o pais à guerra com a Rússia. Para evitar que isso ocorra, é necessário que haja tempo para que os ânimos se acalmem e espaço para que os EUA, a UE e a Rússia tomem medidas conjuntas para evitar o colapso econômico do país. Evidentemente, a imposição de condições aos empréstimos feitos à Ucrânia, tais como a aceitação de políticas econômicas preconizadas pelo FMI, não se aplicariam. Os recursos poderiam vir de doações de Rússia, EUA e UE, e seriam administrados em comum acordo até a situação do país se estabilizar.
Nesse ínterim, um quarto passo consistiria em autorizar, via Conselho de Segurança, o envio de Forças de Paz compostas por tropas majoritariamente russas, mas com a participação menor da OTAN, para garantir a segurança da população russa no país. Os moldes seriam os mesmos da KFOR, de atuação no Kosovo e que contou, inicialmente, com participação russa. A administração dessa força estaria sob responsabilidade do Conselho OTAN-Rússia, órgão dentro da OTAN que trata da cooperação entre eles. Isso reativaria o órgão e evitaria que anos de cooperação entre as partes fossem perdidos caso haja uma ruptura em sua relação.
Embora não sejam de fácil implementação, essas medidas podem oferecer uma alternativa pacífica à resolução da crise, sem que a soberania territorial da Ucrânia seja violada e sem que os russos que habitam o país sejam vítimas de práticas discriminatórias. Além disso, o dialogo entre a Rússia e seus parceiros Ocidentais seria mantido, e haveria tempo para que a situação da Ucrânia se normalizasse e os elementos mais extremistas dessa crise perdessem o prestígio adquirido junto a seus simpatizantes. Se medidas nessa direção não forem adotadas, os problemas em breve serão bem mais complicados e, infelizmente, apenas o diálogo não será suficiente para resolvê-los.


[1] Esse trabalho foi escrito com base em entrevistas que tenho dado sobre os acontecimentos recentes na Ucrânia e debates que tenho participado sobre o assunto em programas de rádio e televisão. Caso haja interesse em fontes sobre as afirmações desse artigo, favor encaminhar um email para: fpmiel@gmail.com


Fabiano Mielniczuk – Doutor em Relações Internacionais pelo IRI/PUC-Rio, Diretor da Audiplo: Educação e Relações Internacionais, professor da Uniritter (Porto Alegre) e pesquisador do Grupo de Pesquisa sobre Potências Médias (GPPM) – 09.03.2014



quarta-feira, 26 de março de 2014

Os ralos do dinheiro público no campo tributário


Uma alternativa para elevar os recursos públicos é fechar seus ralos. No lado dos gastos, é preciso controle para evitar desvios com corrupção, e aprimorar a alocação. Já no lado dos ingressos, é urgente combater os buracos negros no campo tributário, que impedem muitos recursos de ingressar nos cofres estatais.

Clair Maria Hickmann, Dão Real dos Santos , Marcelo Ramos Oliveira
A demanda por recursos públicos é cada vez maior. A briga pela apropriação do “bolo” é quase uma guerra. Nas recentes manifestações públicas brasileiras, surgiram novas e diversas demandas, desde o “passe livre”, saúde, educação, até melhorias do serviço público em geral. A resposta dos governantes é sempre a mesma: “Não há recurso público”. Mas será que realmente não existem recursos suficientes para atender às demandas da sociedade?
Inicialmente, cabe dizer que a aplicação e a origem dos recursos públicos são sempre uma decisão política. Ao governo cabe dizer onde os recursos serão investidos, e isso também significa dizer onde não serão aplicados. Cabe igualmente ao governo dizer de onde e de quem os recursos serão retirados, e de quem não serão cobrados, ou seja, quem vai e quem não vai pagar a conta. E governo aqui deve ser lido em sua acepção mais ampla, envolvendo todo seu conjunto de instituições. Trata-se, enfim, de uma opção política.
Uma alternativa para aumentar os recursos públicos disponíveis é fechar seus diversos ralos. No lado dos gastos e despesas, é necessário melhorar o controle e a gestão da coisa pública para evitar desvios com corrupção, além de melhorar a qualidade da alocação dos recursos. Já no lado dos ingressos, é urgente combater os buracos negros no campo tributário, que fazem que muitos recursos públicos deixem de ingressar nos cofres estatais.
Vejamos, portanto, alguns ralos do dinheiro público no campo tributário. Estes  ocorrem em no mínimo três dimensões. A primeira está no espaço da legalidade formal, em que leis e outras peças normativas exoneram as classes mais abastadas de contribuir com o custo do Estado. Outra se refere aos mecanismos de evasão ou elisão que proporcionam tantos espaços para os planejamentos tributários, sobretudo pela desregulamentação dos fluxos internacionais comerciais e financeiros, paraísos fiscais e países com tributação favorecida. Há ainda uma terceira dimensão, que compreende os mais variados mecanismos técnicos que impedem ou dificultam a cobrança dos créditos tributários devidamente lançados. Esse terceiro aspecto envolve ainda a dificuldade de manutenção dos créditos nas esferas de julgamento e os diversos artifícios de “blindagem patrimonial” usados por devedores “poderosos”.
Cada uma dessas três dimensões, embora se materialize de forma distinta no campo fático, decorre de uma mesma causa e produz efeitos convergentes. A submissão da política aos interesses daquelas minorias privilegiadas que detêm a maior fatia das riquezas sociais produz a apropriação do público pelo privado, perpetuando um círculo vicioso difícil de ser quebrado e que pode ser representado na expressão “tem poder quem tem dinheiro e tem dinheiro quem tem poder”. O efeito, portanto, não poderia ser outro senão a ampliação contínua das brechas e dos mecanismos para que esses setores não sejam alcançados pela tributação. Segundo Antonio David Cattani, em A riqueza desmistificada (Marcavisual, 2013), “corporações e indivíduos em condições socioeconômicas privilegiadas, em especial os super-ricos, têm capacidade de manejar uma série de expedientes que lhes permitem não obedecer aos regramentos válidos para todos, [...] elisão e evasão fiscais, ocultação de bens são práticas mais facilmente utilizadas por aqueles capazes de usar seus incomensuráveis recursos para evitar que a tributação estatal recaia sobre suas fortunas”.
A dimensão da legalidade define formalmente a abrangência da “mão” do Estado, aonde e como ela pode ir com o intuito de buscar os recursos que financiem sua atuação. É nessa dimensão que as classes dominantes constroem os conceitos ideológicos que regerão e dominarão a sociedade. Um exemplo disso é a contestação geral de que a carga tributária, atualmente em torno de 35% do PIB, é muito alta, o que reforça em todos uma ideia de consenso a legitimá-la, levando a crer que todos os brasileiros pagam em torno desse percentual. Todavia, vemos que a carga não recai uniformemente, mas, de modo paradoxal, concentra-se sobre as camadas menos aquinhoadas da sociedade.1 É difícil explicar, segundo princípios de equidade e de justiça fiscal, que alguns tipos de renda tenham tratamento diferenciado simplesmente em razão de sua origem. É o caso da isenção do Imposto de Renda na distribuição de lucros e dividendos. Por outro lado, rendimentos oriundos do trabalho são tributados normalmente.

Renúncia fiscal – JCP
Entre tantos casos de construções legais de renúncias e benefícios fiscais, escolhemos escrever nesta edição sobre a dos juros sobre o capital próprio (JCP). Esse mecanismo permite que as empresas paguem a seus sócios juros sobre o capital investido, criando com isso uma despesa fictícia na pessoa jurídica que reduz o lucro tributável de Imposto de Renda e da contribuição social sobre o lucro em 34%. Além disso, o acionista contemplado com a distribuição dos JCP é privilegiado ao ser tributado com uma alíquota única de 15% de Imposto de Renda na fonte. No final dessa conta, há uma renúncia fiscal de 19% no recolhimento de Imposto de Renda. Trata-se, na verdade, de uma modalidade de distribuição dos lucros mascarada por um artifício fiscal.
Destaque-se aqui, novamente, o privilégio na tributação do rendimento do capital (juros sobre o capital próprio), que paga apenas 15%, e ainda exclusivamente na fonte, o que quer dizer que esse rendimento não é levado à incidência da tabela progressiva, cuja alíquota chega a 27,5%. Trata-se de mais uma forma “legal” de burlar o princípio constitucional da progressividade, criado para tornar a tributação mais justa.
Nas contas do governo federal, os JCP não são considerados renúncia fiscal. No entanto, é importante esclarecer que, de acordo com a Lei de Responsabilidade Fiscal, a renúncia fiscal compreende também “alteração de alíquota ou modificação de base de cálculo que implique redução discriminada de tributos ou contribuições, e outros benefícios que correspondam a tratamento diferenciado”.2
Qual será o valor dessa renúncia fiscal?Seguramente, alguns bilhões. E o valor das outras tantas renúncias e privilégios tributários existentes nas três esferas de governo?
Por que o governo não revela o montante dessas renúncias? A sociedade pode e deve exigir dos governantes a divulgação desses valores. Será necessário o povo ir às ruas para reivindicar a transparência dessas renúncias fiscais que já deveriam ser divulgadas?

Evasão ou elisão fiscal
Uma segunda dimensão é aquela definida pela omissão do Estado em exercer sua jurisdição delimitando as áreas de atuação dos agentes econômicos que se aproveitam para se evadir de suas obrigações tributárias por meio dos mais variados esquemas. O “jeitinho brasileiro” é pródigo em inventar “esquemas” e “interpretações” em que a forma é mais importante que a substância, de modo a possibilitar a fuga dos tributos. O uso de paraísos fiscais, pelos quais transitam apenas papéis para transferir lucros e impostos de um ponto a outro do planeta, é a ponta do iceberg da fuga dos capitais de suas legítimas obrigações tributárias.

Nas exportações
Uma prática muito comum das grandes corporações é criar uma filial ou empresa coligada em um paraíso fiscal e/ou país com baixa tributação e transferir seus lucros para esses locais. Grandes empresas exportadoras de commodities (ferro, soja, sucos) e de outras atividades vendem suas mercadorias para suas próprias filiais, localizadas em paraísos fiscais, a um preço muito baixo, reduzindo o lucro no Brasil. Essas filiais, por sua vez, refaturam o mesmo produto para o cliente final, porém agora a preço de mercado. A mercadoria vai direto ao cliente final, mas o lucro fica na filial brasileira localizada no paraíso fiscal, onde não paga tributo algum ou paga muito pouco. Nesse caso, sob o aspecto formal, o adquirente da mercadoria é uma empresa, por exemplo, da Suíça, mas o destino final da mercadoria é outro país. Os recursos que ingressam no Brasil são aqueles faturados para o paraíso fiscal, e não aqueles que o cliente final efetivamente pagou.
O Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC)3 tem divulgado que o maior comprador dos produtos brasileiros é a China, seguido dos Estados Unidos. Mas esse estudo considera que o país comprador é aquele do destino da mercadoria. Contudo, se fosse feito um levantamento para identificar o país adquirente, de acordo com os documentos fiscais, o resultado seria chocante, porque Suíça e Ilhas Cayman, provavelmente, apareceriam como os dois maiores compradores das exportações brasileiras. Para o resultado do comércio exterior, isso pode não ser relevante, mas para os cofres públicos brasileiros representa uma enorme perda de arrecadação tributária.
Bem, você pode dizer que o lucro da filial brasileira no exterior deve ser tributado no Brasil. Sim, de fato, e a legislação brasileira assim prevê. Mas aí começa outro problema que parece interminável: essas corporações interpretam que essa tributação somente pode ocorrer quando o lucro for efetivamente disponibilizado no Brasil (quando será?) e recorreram à Justiça, fazendo que essa discussão se prolongue por mais de dez anos. Sabe-se que a pressão desses grupos é grande para ganhar a disputa e até para mudar a legislação. Alegam que o “Brasil precisa incentivar a expansão das empresas brasileiras no exterior”. Não nos parece que deva ser essa a política do Brasil, quando temos carência enorme de capital e financiamento de infraestrutura.

Nas importações
Nas operações de importação, ocorrem práticas semelhantes, porém em sentido contrário. Grandes empresas, principalmente multinacionais, importam mercadorias, bens e serviços por intermédio de uma companhia vinculada e/ou localizada em um paraíso fiscal. O preço da mercadoria, porém, é superfaturado para aumentar o custo brasileiro e, em consequência, reduzir o lucro tributável. O objetivo final é o mesmo: transferir lucros para um local onde a tributação seja nula ou muito baixa.
Há uma legislação específica de “preço de transferência” que limita essas operações, mas sua aplicação é complexa e muito questionada juridicamente, e as discussões nos tribunais arrastam-se por muitos anos. Vale lembrar que se trata de planejamentos tributários internacionais, elaborados pelas maiores empresas e por grandes bancas de advogados, e a influência desses grupos no meio político e no financiamento de campanhas eleitorais é bastante conhecida.
Além disso, a legislação tributária nunca alcança todas as situações, muitas vezes por falta de vontade política, outras porque as empresas estão sempre criando novos artifícios para burlar o fisco.

Paraísos fiscais, o grande buraco negro mundial
Recentemente, em nível internacional, tanto os países do G20 como os do G8 reconhecem que a exagerada desregulamentação dos fluxos comerciais e financeiros internacionais, promovida pela globalização para dar eficácia à fragmentação dos processos produtivos pelo mundo, tem de fato produzido uma profunda erosão das bases tributárias em todos os países, na medida em que permite que as grandes corporações possam transferir com facilidade grande parte de seus lucros para os paraísos fiscais. Segundo estudos produzidos por organizações internacionais,4 esse fenômeno faz que essas grandes corporações empresariais não paguem mais do que 5% de impostos sobre seus lucros globais obtidos ao redor do mundo, e os estudos visam propor medidas para reduzir esses impactos negativos. Paradoxalmente, na próxima reunião marcada pela Organização Mundial do Comércio, para dezembro deste ano, em Bali, na Indonésia, está prevista a assinatura do Acordo de Facilitação de Comércio Internacional, medida fortemente influenciada pelo interesse das grandes empresas e que objetiva impor aos Estados nacionais inúmeras restrições ao seu poder de controlar ou fiscalizar tais fluxos, dificultando, assim, ainda mais o combate à evasão fiscal.

Limitações administrativas
Finalmente, a terceira dimensão pela qual se esvaem recursos públicos é aquela das limitações definidas na área administrativa. São construções ideológicas, escondidas sob o manto da tecnicidade, que, por exemplo, definem que as administrações tributárias devem ser eficientes e eficazes, acima de tudo sobre os pequenos contribuintes, enquanto relevam ações mais contundentes sobre os maiores. Os créditos tributários lançados enfrentam mil e uma dificuldades para sua conversão em recursos recolhidos. As infindáveis possibilidades de recursos administrativos e judiciais é um dos grandes problemas: o contribuinte pode recorrer a diversas instâncias administrativas e depois ainda discutir a causa na Justiça. Com isso, as cobranças arrastam-se por mais de quinze anos. E, quando finalmente a dívida é cobrada, o devedor já não tem mais patrimônio em seu nome ou o transferiu para algum paraíso fiscal, o que no mercado é conhecido como “blindagem patrimonial”. Outra dificuldade é a inimputabilidade penal pelo pagamento, o que significa que, caso o sonegador seja autuado pelo fisco, ele pode pagar a dívida e então seu crime deixa de ser crime. Aliás, não precisa nem pagar tudo, pode parcelar.

Conclusão
Os elementos apresentados aqui são apenas parte dos inúmeros mecanismos legais, estruturais, culturais e jurídicos que não fazem outra coisa que não colocar uma parcela significativa das riquezas a salvo de qualquer tributação, desmentindo o clássico aforismo de Thomas Fuller, de que por mais alto que se esteja, a lei sempre estará acima, como demonstra Cattani. A dificuldade de cobrar tributos daqueles com maior capacidade contributiva ou a opção política de não fazê-lo fragilizam a capacidade dos Estados de promover políticas públicas voltadas para o bem comum, seja, de um lado, pela falta de recursos, ou, de outro, pela necessidade de adotar a alternativa mais fácil de construir e manter um sistema tributário altamente regressivo, baseado em tributos sobre o consumo que, comprovadamente, retiram a maior parte dos recursos das classes que mais necessitam, aumentando a desigualdade e a precarização das condições de vida dos mais pobres e forçando a alocação dos gastos sociais muito mais para ações compensatórias do que para promover acréscimo de bem-estar.

1 Fátima Gondim Farias e Marcelo Lettieri Siqueira,“Bases tributárias brasileiras: penalizando os pobres e beneficiando os rentistas”. In: A sociedade justa e seus inimigos, Tomo, Porto Alegre, 2012.
2 Lei Complementar n. 101/2000, em seu art. 14, § 1o.
3 Ver: .
4 Nesse sentido, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), em julho de 2013, divulgou seu relatório de proposição de ações denominado “Action plan on base erosion and profit shifting” [Plano de ação sobre erosão na base e deslocamento de lucros]. Disponível em: . Ainda que o assunto seja complexo, as organizações sociais ligadas ao tema da justiça fiscal têm sérias críticas à limitação de sua abrangência.
Setembro de 2013


Clair Maria Hickmann – Auditora fiscal da Receita Federal. Foi diretora de Estudos Técnicos do Unafisco Sindical de agosto de 2001 a julho de 2003 e de agosto de 2005 a julho de 2007; Dão Real dos Santos – Auditor fiscal da Receita Federal; Marcelo Ramos Oliveira – Membro do Instituto de Justiça Federal – Setembro de 2013

In Le Monde Diplomatique Brasil http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1484

domingo, 23 de março de 2014

Israel amplia violência histórica contra palestinos


A violência do exército é constante: a todo momento homens e até crianças consideradas “subversivas por resistir à ocupação” são presos.
Bairros palestinos têm suas casas demolidas todos os dias. A maioria das fontes de água está nas mãos de Israel, que libera seu uso para os agricultores israelenses, mas as proíbem aos palestinos.

José Coutinho Júnior
 “Essa estrada leva a uma área ‘A’, controlada pela Autoridade Nacional Palestina (ANP). A entrada de cidadãos israelenses é proibida. Há perigo para suas vidas e afronta a lei de Israel”. O aviso, impresso em uma placa vermelha em todas as fronteiras entre Israel e as áreas controladas por palestinos, dá o tom da realidade no Oriente Médio.
Para Israel, há um inimigo perigoso do outro lado da linha e, por isso, a necessidade de se manter uma ostensiva militarização. Sob a perspectiva dos palestinos, a situação é diferente: para eles, a ocupação israelense é um projeto de colonização que pretende expulsar os árabes de sua terra. Prova disto é o fato de Israel já ter anexado boa parte de todo território da Palestina.
Em 1948, resolução da Organização das Nações Unidas (ONU) determinou que 51% do território fossem destinados para a criação de Israel. Hoje, 78% das terras palestinas estão sob domínio israelense, restando como território palestino somente a Cisjordânia e a Faixa de Gaza. E até mesmo na Cisjordânia, território supostamente governado pela ANP, as mais de 120 colônias israelenses ocupam 88% de todo o território.

(...)
Para continuar a leitura, acesse http://www.brasildefato.com.br/node/26919









José Coutinho Júnior – Repórter enviado à Palestina – 17.12.2013.
IN Brasil de Fato.  


sexta-feira, 21 de março de 2014

Desordem e progresso


há um claro azedamento do clima político, que não começou ontem. A criminalização do adversário político, de lado a lado, misturando acusações de corrupção à discordância quanto a opções de políticas públicas - como se fossem a mesma coisa - não é uma completa novidade, mas vem recrudescendo. E o problema disso é o seguinte: se o adversário é um criminoso, o próximo passo é defender sua proscrição do jogo. Faz-se democracia assim?

Cláudio Gonçalves Couto
Diversos eventos agitam a vida política nacional desde junho do ano passado, quando tomaram as ruas manifestações de tipos diversos, portadoras de reivindicações disparatadas, motivações desalinhadas e métodos diferentes. Os últimos ingredientes desses movimentos heterogêneos não se resumem à primeira vítima fatal produzida por manifestantes (já que outras antes houvera, causadas por sequelas da ação da polícia ou por investidas de motoristas inconformados com o bloqueio das ruas), nem ao lema chantagista do "Não vai ter Copa" - seguido das ameaças diretas de violência contra as delegações estrangeiras.
Há, na realidade, muito mais sinais no horizonte, dando conta de que algo vai mal na conjunção do sistema político com a sociedade. A opção cada vez mais desabrida por soluções violentas e fora da lei para problemas sociais e políticos é defendida de viva voz, ora por militantes de esquerda, ora por jornalistas de direita, e todo o tempo no âmbito da subopinião-pública que fermenta na internet - nas redes sociais e blogs. Fossem apenas a apologia ao justiçamento ou a ameaça verbal a esportistas e políticos, já teríamos razões de sobra para nos preocuparmos. Todavia, há mais do que isto, pois justiçamentos têm sido efetivados e a violência contra desafetos já acontece.
Por fim, há um claro azedamento do clima político, que não começou ontem. A criminalização do adversário político, de lado a lado, misturando acusações de corrupção à discordância quanto a opções de políticas públicas - como se fossem a mesma coisa - não é uma completa novidade, mas vem recrudescendo. E o problema disso é o seguinte: se o adversário é um criminoso, o próximo passo é defender sua proscrição do jogo. Faz-se democracia assim?
O que, afinal, sucede?
O país, nos últimos 20 anos, experimentou um acelerado processo de mudança. Primeiramente, foi o fim da hiperinflação, e a consequente redução da pobreza. Tal processo se fez acompanhar do incremento de políticas sociais, como educação e saúde - sem contudo aumentar de forma significativa sua qualidade. Na sequência, veio a ampliação das políticas de transferência de renda - seja diretamente, pelas políticas focalizadas (como o Bolsa Família), seja indiretamente, pela redução do desemprego e pelo aumento do salário mínimo. Com isto, adveio uma nova e mais pronunciada redução da pobreza, além da queda da desigualdade.
Como já exaustivamente observado por estudiosos, milhões de brasileiros ascenderam economicamente, aumentando a chamada "classe C", definida por alguns como "classe média", mas melhor categorizada por Jessé Souza, como uma classe de "batalhadores" - já que não dispõem de alguns elementos distintivos da classe média, como o capital cultural e reconhecimento como tal. Observou-se que tal ascensão social se deu via consumo, de modo que em vez de "cidadãos" os emergentes seriam apenas novos "consumidores". Na feliz imagem do então candidato a prefeito, Fernando Haddad, "a qualidade de vida da porta para dentro melhorou, mas não se reflete da porta para fora".
A ascensão pelo consumo, contudo, tem efeito desorganizador na ordem tradicional da sociedade brasileira, tão calcada sobre a desigualdade. O acesso a certos bens de consumo era, até pouco tempo atrás, signo de distinção social. O acesso ao aeroporto, a certos shoppings e a certas marcas não estava disponível para qualquer um. Apenas os originários das classes abastadas (e os poucos que a elas adentravam), "gente bonita", logravam exibir sinais de seu pertencimento a um estrato social distinguido. A chegada de "gente diferenciada" a esses lugares, como resultado do recente progresso social no país, gerou desordem - subvertendo o lema de nossa bandeira.
Surgiu daí um duplo ressentimento. Primeiramente, dos de cima (sobretudo dos não tão de cima) que perderam a sua distinção baseada no consumo. Depois, dos de baixo (sobretudo dos não tão de baixo) que, após ascenderem pelo consumo, passaram a almejar também o reconhecimento que supostamente poderiam lhes proporcionar as marcas da distinção (o mais das vezes "marcas" mesmo, comerciais) mas têm a porta da sociedade distinguida batida em sua cara.
O exemplo eloquente do primeiro ressentimento foi a tão difundida postagem no Facebook de uma professora universitária que debocha de um passageiro - supostamente trajado de forma indevida para um aeroporto - acompanhada por comentários de pares que lastimam a perda do "glamour" de voar - talvez existente nas propagandas da Varig dos anos setenta. Ao questionar "Aeroporto ou Rodoviária?", a acadêmica indicou lugares aos quais deveriam pertencer pessoas de maneiras, trajes e origens sociais diferentes. O problema é que a rodoviária incorporou-se ao aeroporto. E lá se foi o glamour, ou seja, a distinção baseada no consumo. Isso é particularmente doloroso para classes médias que nos últimos doze anos não progrediram tanto quanto os que vieram de baixo.
O melhor exemplo do segundo ressentimento é o rolezinho nos shoppings chiques, por jovens da periferia. Agora que têm acesso franqueado a roupas de grife, por que também não frequentar os lugares de grife? E a porta lhes bateu na cara, literalmente. Claro que há o problema do tumulto, com tanta gente chegando ao mesmo tempo. Mas esse tumulto não pareceu ser problema na inauguração da Apple Store no Rio, nem nas celebrações dos estudantes uspianos no Shopping Eldorado. Tais incongruências alimentam o ressentimento.
A perda da distinção embaralha referências até então solidamente estabelecidas. Tal embaralhamento, acompanhado pela frustração de uma continuação da melhora, seja "da porta para fora", seja "da porta para dentro", suscita ansiedades e alimenta a busca de soluções por fora das vias institucionais do Estado - que, por sua vez, não conseguiram acompanhar na mesma velocidade as mudanças sociais. E instituições estatais em descompasso com o progresso social são uma fonte propícia à desordem e, logo, à violência. Eis aí a chave do atual recrudescimento dos ânimos.


Cláudio Gonçalves Couto – Cientista político e profesor da FGV/SP –18.02.2014