Pedro Silva Barros – “não tenho a menor dúvida em afirmar
que a Venezuela é o melhor país da região para alguém que está na metade mais
pobre da população viver, se alimentar, ter acesso à educação e a bens de
consumo. Não poderia dizer o mesmo na primeira vez que estive aqui, pouco mais de
uma década atrás”.
Valéria Nader
Acompanhar o noticiário internacional é
sempre uma experiência que demanda discernimento – afinal, trata-se de notícias
que vêm de longe e que, além de obviamente sujeitas ao viés analítico e
ideológico do órgão de comunicação que as irradia, são relativas a fatos não
vivenciados no dia a dia do público leitor. No Brasil, precisa-se de bem mais
que discernimento para passar por esta experiência – muita desconfiança e dois
pés pra trás talvez não deem conta da tarefa, especialmente se estão em foco
países que tomaram um rumo que fuja minimamente ao que determina o mainstream.
A Venezuela é certamente um desses países. E
não se trata aqui de tecer louvores ao país latino-americano, o qual, a exemplo
de tantas outras nações de nossa região, tem uma trajetória marcada por uma
série de contradições e precariedades sociais e políticas. Trata-se
simplesmente de apelar para noções básicas e primárias do jornalismo, de modo
que, diante dos fatos, se porte com um mínimo de seriedade e isenção.
Assistir aos noticiários ou ler
matérias dos maiores grupos de mídia sobre os últimos manifestos na Venezuela é
se deparar, no entanto, sem exceção, com um bloco monocórdio, parcial e
tendencioso. Um dos jornais televisivos de maior repercussão no país, o Jornal
Nacional da Rede Globo, em uma de suas edições da semana passada, chegou a
trazer os acirrados acontecimentos da Venezuela, com sua população visivelmente
dividida (como é de praxe em situações sociais de conflagração ou mais
extremadas), a partir das falas, imagens e cenários de somente um dos lados – a
oposição ao presidente Maduro e ao chavismo.
Ideias como as refletidas pela
frase “Governo que cai? Não. Governo que sustenta grupos paramilitares e
uma polícia política, dispostos a aterrorizar atos da oposição, espionar e
matar”, seguida de posterior e literal alusão ao nazismo – frase de um
editorialista da Folha de S. Paulo, na segunda-feira, 24 de fevereiro -, são
quase exclusivamente o que se vê espelhado pela imprensa corporativa.
Autênticas caricaturas de direita, ditadas pelos porta-vozes e críticos vorazes
dos clichês que saem pela esquerda.
Para avançar o debate, o Correio da Cidadania
insere-se na tentativa de outros veículos que procuram dar voz àqueles que não
têm entrada na grande mídia e que apresentam fatos e visões que nela são quase
proibidos. Na noite de segunda-feira, 24 de fevereiro, conversamos com Pedro
Silva Barros. Professor licenciado
do Departamento de Economia da PUC-SP e doutor em Integração da América Latina
pela USP, é técnico de planejamento e pesquisa do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea) e titular da missão deste órgão do governo federal em
Caracas, Venezuela, desde setembro de 2010.
Dentre as várias e abrangentes colocações
sobre o país no qual vive há quase 4 anos, Barros destaca que “os canais
estatais não superam, somados, 10% da audiência”. Ele está se referindo ao
mesmo país e à mesma mídia que os meios de comunicação por aqui denunciam como
“100% controlados pelo chavismo”.
Abaixo, a entrevista exclusiva.
Correio da Cidadania – A Venezuela está no olho do furacão e, para
aqueles que observam de fora os acontecimentos políticos, o cenário é no mínimo
confuso. O que você teria a comentar, em primeiro lugar, sobre os últimos e
intensos protestos e a composição das forças oposicionistas (protagonizada por
Henrique Capriles e Leopoldo López) que estão a mobilizá-los?
Pedro Barros – A oposição na Venezuela tem
marchado unida dentro de sua multiplicidade. Depois de uma derrota de mais de
20% dos votos no referendo em que tentava revogar o mandato do presidente
Chávez em 2004 e de boicotar as eleições parlamentares de 2005, apoiaram Manuel
Rosales nas presidenciais de 2006 e Capriles nas eleições de 2012 contra Chávez
e no apertado pleito de 2013 contra Maduro, além dos referendos para mudanças
constitucionais de 2007, o único em que foram vitoriosos, e de 2009.
Em 2012, a economia venezuelana cresceu mais de 5% e a inflação
havia diminuído, ainda que num patamar alto, próximo a 20%; Chávez venceu as
eleições em outubro com mais de 10% de vantagem. No início de 2014, após a
vitória governista nas eleições municipais de dezembro passado, houve uma aproximação
do governador (de Miranda, o estado com as maiores taxas de homicídio do país)
Capriles com o governo federal para tratar de temas específicos, notadamente
segurança pública. Esse tema é particularmente importante quando se leva em
conta que, em 2012, o presidente Chávez havia lançado o Plano Nacional de
Segurança Pública e o governo de Miranda não havia participado desse processo.
Talvez isso o tenha afastado dos setores mais radicais da oposição, liderados
por Leopoldo López.
Nas últimas semanas, López, o prefeito de Caracas, Antonio Ledezma, e a
deputada María Corina lançaram o movimento “A Saída”, abrindo espaço para
reivindicações extra-constitucionais. A despeito da condenação de Capriles e
outras figuras históricas da oposição, parcela importante do movimento
estudantil aderiu à radicalização, que culminou nos episódios violentos de 12
de fevereiro, que deixou três mortes, dezenas de feridos, inclusive das forças
de segurança, e destruição de prédios públicos. Hoje as mortes já chegaram a
quinze.
A justiça venezuelana expediu uma ordem de detenção de Leopoldo López,
acusando-o de mentor intelectual dos protestos (formalmente, as acusações são
associação para delinquência, danos ao patrimônio e incitação à violência).
Ainda que seja um setor minoritário na oposição, o radicalismo tem ganhado
força, particularmente na fronteira com a Colômbia e na região mais rica de
Caracas. Alberto Ravell, jornalista muito influente na oposição, escreveu hoje
pelo Twitter que “na Ucrânia já foi possível” - avalio que seja uma declaração
bastante ilustrativa das intenções dos setores mais radicalizados.
Correio da Cidadania – O Prêmio Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel disse
à imprensa argentina que “há uma intenção de desestabilizar não apenas a
economia, como também a ação social e política” na Venezuela, o que seria
especialmente patrocinado pelos EUA. Como você encara esta possibilidade, ou
seja, a ingerência externa na Venezuela?
Pedro Barros – A história recente da Venezuela é marcada
pelo golpe de 2002, que levou o empresário Pedro Carmona ao poder por menos de
48 horas. Apenas os governos dos EUA de George W. Bush e da Espanha de José
María Aznar, além do Fundo Monetário Internacional, reconheceram a legitimidade
de Pedro, o Breve. Desde então, foi frequente a tensão entre
Venezuela e EUA.
Na semana passada, por exemplo, a deputada cubano-americana Ileana
Ros-Lehtinen (Partido Republicano, Florida) afirmou que demandou ao presidente
Barack Obama sanções econômicas à Venezuela. No mesmo ato em apoio às manifestações,
realizado em Miami, Luigi Boria, prefeito de Doral, cidade com alta
concentração de latinos na Florida, expôs que estava “muito entusiasmado porque
acredito que agora sim se produzirá uma saída frente ao atropelo, à violação
aos direitos humanos que se vive na Venezuela” e que “a experiência da Síria
deve levar a uma reflexão do Departamento de Estado sobre as ações que se devem
tomar. Acredito que os Estados Unidos e o presidente Obama devem tomar ações
sobre a Venezuela”. Seria difícil não considerar natural e legítimo que o
governo e os venezuelanos se preocupem com esse tipo de demanda externa.
Nem seria necessário elencar as intervenções norte-americanas na América
Latina ou em países exportadores de petróleo, apenas lembrar que a Venezuela
está a três horas de voo de Miami e possui reservas de mais de 300 bilhões de
barris de petróleo, a maior do mundo. De acordo com a Agência Internacional de
Energia e com o principal anuário estatístico do tema, editado pela petrolífera
britânica BP, a Venezuela tem as maiores reservas de petróleo do mundo. Ainda
que seja predominantemente um petróleo pesado, cujo custo de refinação de um
barril supera US$ 20, ele é vendido a quase US$ 100 por barril.
Talvez valha ainda apontar que, há dez anos, a Venezuela não exportava
nenhuma gota de petróleo para a China e hoje vende mais de 400 mil barris
diários para seu maior parceiro asiático.
Correio da Cidadania – Em que medida, de todo modo, a tensão está
associada às reais condições sociais e econômicas do país, que têm de fato se
precarizado, sobrepondo-se ao cenário e visão tão polarizados quando a
Venezuela está em foco?
Pedro Barros – Nos quinze anos de chavismo, a Venezuela foi o
país do mundo que mais distribuiu renda e combateu a pobreza. Isso foi impulsionado
pelo incremento do investimento social, permitido pelo aumento da arrecadação,
principalmente devido ao aumento do controle do governo sobre a renda
petroleira, que foi particularmente alta nesse período. O mesmo êxito não
ocorreu nas tentativas de diversificar a economia e, mais recentemente, no
controle de importantes variáveis macroeconômicas, como o câmbio ou a inflação.
Há evidentes problemas na economia venezuelana; ao mesmo tempo, a
maioria da população tem a clareza de que a alternativa não é retornar ao
passado. A repetição da saída fracassada de 2002 é improvável em um cenário em
que as forças armadas, a estatal petroleira e parte dos meios de comunicação
estão comprometidas com o processo político em curso. Em 2002, parte considerável
da cúpula militar, a maioria da direção da estatal petroleira PDVSA e todos os
meios de comunicação relevantes estavam absolutamente comprometidos com o golpe
- mesmo assim, o povo na rua, em atitude inédita na região, reverteu as
ambições desses setores.
Naquele tempo, por exemplo, não estavam estruturadas as missões sociais,
as redes de distribuição de alimentos a preços bastante subsidiados. A pobreza
extrema chegava a 13,5% da população, hoje está em 2,5%, um número fantástico
para um país latino-americano. Não há grandes mudanças no estoque de riqueza
(patrimônio), mas os resultados na distribuição de renda são fabulosos: a CEPAL
aponta a Venezuela como a melhor distribuição de renda da América Latina,
medida pelo coeficiente de Gini, superando o Uruguai ou a Costa Rica. O governo
construiu uma grande rede com 27 mil pontos de distribuição de alimentos entre
hipermercados, mercados médios e postos itinerantes. Ainda que haja escassez de
alguns itens, o consumo per capita de proteína triplicou em 15 anos, a
mendicância praticamente inexiste, ninguém passa fome. As camadas mais pobres
da população vivem melhor e têm muito mais conhecimento sobre os seus direitos.
Há também uma economia difícil de ser analisada a partir do exterior. Os
subsídios são imensos, particularmente sobre energia, transporte, comunicação,
alimentos básicos e itens de primeira necessidade. Uma lata de refrigerante
custa quatro vezes mais do que um tanque de 50 litros de gasolina em um mesmo
posto de serviço. Uma parcela muito pequena da população tem renda familiar
inferior a 5 mil bolívares. Um bilhete do metrô de Caracas custa 1,5 bolívares,
o mesmo valor de um minuto de ligação de um celular venezuelano para um celular
no Brasil; o custo mensal do gás residencial é de 8 bolívares para mais de 90%
dos consumidores; a assinatura da TV a cabo por mês custa aproximadamente 300
bolívares. Isso permite um padrão de consumo para a maioria dos venezuelanos
que apenas uma minoria dos latino-americanos consegue ter.
Ao mesmo tempo, há distorções importantes, a escassez e as filas têm
aumentado, parece que uma parte importante das classes médias não está disposta
a enfrentá-las em seu cotidiano e alguns mercados não querem tê-las,
restringindo o acesso e limitando a compra dos produtos subsidiados. Nos
últimos anos, esses impasses foram equacionados e legitimados em disputas
eleitorais: o governo mostrando as conquistas e a oposição, as limitações do
modelo político, social e econômico. Vários organismos internacionais e
organizações renomadas, como a Unasul e o Centro Carter, têm reconhecido as
eleições e o sistema eleitoral da Venezuela como justo e limpo. Os resultados
têm sido ligeiramente favoráveis ao chavismo. A oposição governa em
importantes estados, como Miranda e Lara, e cidades, como Caracas, Maracaibo e
Barinas, capital do estado homônimo onde Hugo Chávez nasceu e seu irmão mais
velho atualmente governa.
Conheço todos, todos os países da América Latina, todos os estados do
Brasil e 21 dos 23 estados venezuelanos; não tenho a menor dúvida em afirmar
que a Venezuela é o melhor país da região para alguém que está na metade mais
pobre da população viver, se alimentar, ter acesso à educação e a bens de
consumo. Não poderia dizer o mesmo na primeira vez que estive aqui, pouco mais de
uma década atrás. O fenômeno migratório é ilustrativo. Ao mesmo tempo em que
algumas dezenas de milhares venezuelanos das classes altas e médias emigram,
principalmente para Estados Unidos, Colômbia e Panamá, a quase totalidade dos
aproximadamente três milhões de colombianos, peruanos e equatorianos das
classes médias e baixas que imigraram para a Venezuela permanece aqui.
Analogicamente, a população universitária do país chega a dois milhões de
estudantes, 7% da população está cursando o nível superior hoje na Venezuela
(no Brasil, este número é menor que 3,5%, ainda que tenha dobrado nos últimos
dez anos), mas a produção científica e a inovação avançaram pouco por aqui.
Correio da Cidadania – Como enxerga, neste sentido, o desempenho do
governo, primeiro de Chávez, e agora de Maduro, e sua relação com a
degringolada da situação econômica e social do país, visto haver intensos
relatos de carestia, inflação galopante, crescente dívida externa, entre
outros?
Pedro Barros: A Venezuela oscilou anos de forte crescimento
econômico com outros de estagnação ou recessão.
É permanente a tensão entre manter o bolívar valorizado, garantindo
subsídios às importações, ou desvalorizá-lo para tentar diversificar a
economia, com riscos de carestia no curto prazo. A opção do governo tem sido a
primeira. No último ano, a sua principal preocupação foi se legitimar
politicamente. No campo econômico, porém, se destacaram a inflação e o
desabastecimento de alguns produtos. O presidente Maduro foi eleito em abril,
pouco mais de um mês após a morte de Hugo Chávez. Havia pressão inflacionária e
certo descontrole do mercado cambial paralelo. Ainda que a dívida externa tenha
crescido e as reservas internacionais tenham caído, a balança comercial da
Venezuela ainda é superavitária. Mais de 70% das reservas venezuelanas são
precificadas em ouro, cujo preço frente ao dólar recuou algo como 30% em 2013,
mas já recuperou quase 10% neste ano; as reservas totais, porém, são o dobro do
que eram há quinze anos. A dívida externa de curto prazo é estável e menor do
que as reservas. A dívida de longo prazo continua um pouco inferior às receitas
de doze meses de exportação petroleira. Isso traz algum conforto para uma
economia tão questionada. Há trinta anos a Venezuela não consegue ter três anos
seguidos de inflação abaixo de 20%; nessas três décadas o período de inflação
mais baixa foi o do governo de Hugo Chávez. Os outros dois governos, de Carlos
Andrés Pérez e Rafale Caldera, tiveram taxas de inflação média superiores aos
56% nos últimos doze meses.
Talvez a ausência de Chávez tenha anestesiado um pouco o país e o
governo. Provavelmente seria imprescindível uma grande estabilidade política
para ajustes de longo prazo na política econômica, mas a vitória bastante
apertada, a demora da oposição em reconhecer a derrota e as eleições municipais
de dezembro impuseram outras prioridades, de curto prazo.
A política de impor redução de preços com coerção estatal
(particularmente dos bens de consumo que eram adquiridos com taxas de câmbio
preferenciais e revendidos ao preço do mercado cambial paralelo) obteve grande
apoio e sustentou um aumento da popularidade do presidente Maduro no último
trimestre de 2013. A oposição tinha a leitura de que a situação econômica havia
se deteriorado no curso do ano e que isso comprometeria o desempenho eleitoral
dos candidatos governistas. O próprio Capriles apresentava a eleição de
dezembro como um plebiscito sobre Maduro. As urnas, porém, garantiram a vitória
chavista em 75% das cidades do país.
No início do ano, principalmente após o assassinato brutal da modelo
Mónica Spear, o tema da segurança pública tomou conta do debate político. Houve
uma aproximação entre governantes das mais variadas matrizes políticas para
tentar amenizar o problema e concertar políticas públicas conjuntas. Parte mais
radical da oposição passou a questionar a liderança de Capriles e a estimular
protestos violentos.
Correio da Cidadania – Como você analisa o gesto político de López, que
se entregou semana passada à polícia venezuelana, sem deixar de fazer discursos
de estímulo a seus seguidores?
Pedro Barros – Há uma disputa interna da oposição entre, ao
menos, duas táticas para chegar ao poder. É parte de qualquer processo político
que haja divisões dentro das grandes coalizões. Há disputas dentro do chavismo
e há embates internos na oposição. Nos últimos anos, porém, os moderados
ganharam espaço em ambos os lados.
Muita gente diz que não é fácil ser político sem mandato. Leopoldo
López, que havia abandonado a prévia da oposição que definiu Capriles como
candidato em 2012, aparentemente apostou no tudo ou nada e parte significativa
de seus seguidores defendem a ruptura institucional. Os oposicionistas que têm
tido votos, como o governador de Lara Henri Falcón, um ex-chavista, porém, são
muito mais moderados. Agora pela noite, em reunião do Conselho Federal de
Governo, ele defendeu que é hora de isolar os violentos e diminuir o tom do
discurso.
O prefeito oposicionista de Baruta (região de Caracas), Gerardo Blayd,
afirmou hoje que os protestos devem ser “racionais e pacíficos”. O mesmo vale
para o prefeito de Chacao, Ramón Muchacho. Essa visão encontra pouco apoio
entre os manifestantes, mas é música para os ouvidos da imensa maioria da
população, fatigada pela polarização e marcada pelo massacre do Caracazo, que
completará 25 anos na quinta-feira, pelo golpe de 2002 e pelo locaute do fim de
2002 e início de 2003.
Correio da Cidadania – Qual a sua opinião sobre a cobertura da mídia,
interna e externamente à Venezuela, no geral e no que se refere aos
acontecimentos aqui narrados?
Pedro Barros – Diferentemente de 2002, hoje há acesso plural às
informações na Venezuela. Nesta manhã fui à banca e contei dez jornais
diferentes, todos eles impressos com papel subsidiado. Oito eram
oposicionistas, com diferentes ênfases.
Sugiro a visita aos sítios do influente eluniversal.com, do tradicional
el-nacional.com, do talcualdigital.com, que nasceu para se opor ao chavismo, do
econômico elmundo.com.ve, do ultimasnoticias.com.ve, que é o mais vendido, e do
governista correodelorinoco.gob.ve. Os dois canais mais vistos da TV aberta, os
privados Venevisión e Televen, que foram protagonistas do golpe em 2002, não
dão maior destaque às questões políticas. Também a privada Globovisión, que
antes só apresentava os pontos de vista da oposição, tem se preocupado em dar
espaço ao governo. Os canais estatais não superam, somados, 10% da audiência.
Na TV paga, que aqui é muito mais acessível e vista do que no Brasil, há vários
canais oposicionistas, inclusive a CNN em espanhol, que tem entrevistado vários
oposicionistas venezuelanos, ainda que seja um canal regional. Evidentemente, a
TeleSUR é seu maior contraponto. No rádio também há grande diversidade, a maior
parte das emissoras privadas são abertamente de oposição, contrapostas pelas
emissoras públicas e, principalmente, comunitárias, que têm muito espaço na
Venezuela.
A cobertura internacional é majoritariamente contrária ao governo, que
parece ter concentrado seus esforços em divulgar internamente suas ideias e
ações. Nos últimos anos, outros países da região talvez estejam seguindo esse
mesmo caminho introspectivo. Surpreende muito o comportamento da imprensa
brasileira, particularmente dos jornais, que antes apresentavam o ponto de
vista do governo venezuelano, ainda que se opusessem a ele.
Vou concentrar meus comentários na Folha de S. Paulo, que acompanho
diariamente desde que me alfabetizei, o que prossigo fazendo hoje, assinando e
lendo a versão eletrônica sistematicamente; e na TV Globo, na qual assisto ao
noticiário por meio da Globo Internacional. O conteúdo mais desinforma do que
informa e a análise, extremamente caricata, é completamente deslocada da
realidade.
Ambos os veículos enviaram jornalistas ao país na última semana, e
nenhum deles procurou o governo ou qualquer posicionamento simpático a ele em
qualquer de suas reportagens. Quando se cita o governo ou se apresenta alguma
declaração, restringe-se a imagens e pequenas frases que são reproduzidas pelas
agências de notícias tradicionais. A coletiva do presidente Maduro à imprensa
internacional na sexta passada, reportada no mundo todo, não contou com a
presença ou a menção desses veículos de comunicação.
No início da semana passada, o Jornal Nacional apresentou duas
entrevistas de rua para encerrar a matéria uníssona de que uma ditadura estava
em curso; na primeira, ao ser perguntado sobre o que esperava para os próximos
dias, o entrevistado afirmou seu desejo de que o governo caia; na segunda, veio
uma ressalva: que não tenha derramamento de sangue. Um roteiro para um golpe a
la Honduras e Paraguai.
Se eu não acompanhasse a Venezuela e estivesse no Brasil, provavelmente
teria essa leitura. Mais para o fim da semana, a mesma repórter foi enfática:
“Os protestos continuam proibidos, mas os estudantes não saem das ruas”. As
manifestações perdiam intensidade e os governos Chávez e Maduro nunca proibiram
protestos na Venezuela, que têm menos restrições e mais proteção para serem
realizados do que na grande maioria das democracias, inclusive do que no
Brasil. O problema da violência e do excesso de armas na Venezuela vai muito
além e independe dos protestos em curso. Os excessos cometidos, que
evidentemente existiram, estão sendo investigados.
Os funcionários do serviço de inteligência que descumpriram a ordem de
aquartelamento e atiraram no dia 12 de fevereiro estão detidos e a investigação
está em curso. O assassinato da estudante que havia sido miss turismo do estado
de Carabobo foi causado por um tiro pelas costas, as investigações também estão
em curso, mas, provavelmente, o tiro partiu de manifestantes da oposição. Os
comentaristas brasileiros foram taxativos ao responsabilizar os “colectivos”
pela morte.
Até agora, em duas semanas de protestos, na contabilidade mais ampla, da
ONG Foro Penal, foram 539 detidos em toda a Venezuela, a grande maioria já
liberados; 19 estão privados de liberdade por decisão judicial, segundo a mesma
contagem. Apenas no sábado passado 262 foram detidos, incluindo 5 jornalistas,
em um único protesto em São Paulo, que talvez tenha sido menos violento do que
os que têm ocorrido aqui.
Hoje à noite, a mesma Delis Ortiz apresentava o general aposentado Angel
Vivas como um herói, respaldado por seus vizinhos por resistir a uma ordem de
detenção com um fuzil norte-americano nas mãos e uma pistola na cintura na
varanda de sua casa. Sequer comentou a motivação da ação policial: ele havia
aconselhado os manifestantes a utilizarem arame farpado nos bloqueios de rua e,
horas depois, um trabalhador que voltava para casa em sua moto foi morto com o
pescoço cortado por essas barricadas. Na reportagem, foi apresentada a vaga
acusação de incitação à violência, sem nenhuma referência ao fato concreto. Na
conta da imprensa brasileira, foi mais um manifestante que caiu em combate
contra as forças da ditadura.
Fico a pensar qual seria a reação dos mesmos jornalistas se uma figura
pública brasileira tivesse, um dia antes da trágica morte do cinegrafista
Santiago Andrade, incentivado que os manifestantes que protestam contra o
aumento da passagem de ônibus no Brasil utilizassem rojões contra a polícia,
alegando que ela havia reprimido desproporcionalmente em atos do passado
próximo.
A enviada da Folha de S. Paulo tem escrito diariamente, raramente cita
uma fonte governamental ou uma posição que não seja de oposição radical a tudo
que foi feito na Venezuela nos últimos quinze anos. As opiniões, quando não são
de políticos opositores, são de ONGs opositoras. Tenta reportar que há
manifestantes que lutam contra uma ditatura, que não podem utilizar meios
eletrônicos e enfrentam o terror de bandos armados clandestinos que defendem o
governo, que permite que eles pratiquem crimes variados impunemente.
Tanto a enviada, como um ex-correspondente que publicou artigo de
análise do caso venezuelano, como outro analista de temas aleatórios,
apresentam uma absoluta confusão entre colectivos, milícias e paramilitares,
como se tudo fosse a mesma coisa, como se não existisse uma lei que
regulamentasse as milícias como reservistas e parte da defesa nacional da
Venezuela, independente de sua coloração política, e que atuam fardados e
identificados. Como se participar de um movimento social fosse, em si, um
crime. Como se o que acontece no México ou na Colômbia fosse transposto
automaticamente à Venezuela. Utilizam o termo milícias como se fossem os grupos
que controlam ou controlavam áreas do Rio de Janeiro.
Ontem o jornal publicou textualmente que a estratégia atual do governo
era bloquear Twitter e Facebook, usando essa terminologia. Não consulto esses
meios com frequência, mas meus colegas de trabalho e alguns amigos, sim: foram
unânimes em afirmar que isso nunca aconteceu na Venezuela. Pode ter havido
oscilação na velocidade da internet, mas nunca o Twitter foi retirado do ar ou
coisa parecida, basta ver a sequência de publicação das mensagens de
venezuelanos. A própria enviada postou pelo Twitter, a partir de Caracas, que
não poderia utilizar redes sociais. Em poucos países do mundo esses
instrumentos são tão utilizados e democratizados pelo amplo acesso à internet
como na Venezuela, que tem a rede mais abrangente e de menor custo da América
Latina. Provavelmente, eles nunca haviam sido tão utilizados aqui como nos
últimos dias.
Infelizmente, para o leitor brasileiro que gostaria de saber o que está
acontecendo na Venezuela, o jornal nunca reportou os mais de 4 milhões de
laptops com acesso à internet distribuídos gratuitamente para estudantes da
educação básica e média. A palavra “canaimita”, que denomina esses
computadores, nunca foi publicada pela Folha. No início deste ano, o governo
anunciou, como parte da expansão do projeto, que distribuirá 2 milhões de
tablets, igualmente com acesso à internet, para estudantes universitários.
Desnecessário dizer que existe uma forte contradição entre essa política macro
de ampliar radicalmente o acesso ao conhecimento e à informação e o denuncismo
de censura estampado na manchete do jornal.
Talvez caminhar um pouco pelas periferias, conhecer um pouco do
interior, sair da área de um quilômetro quadrado ao redor do hotel da área mais
nobre de Caracas, que abrigou os generais golpistas de 2002 e 2003 e que
concentra os protestos dos últimos dias, ajudasse a entender o que se passa na
Venezuela.
Correio da Cidadania – Como você acha que se dará o desfecho de mais esta
crise venezuelana e quais as perspectivas do chavismo, um processo político que
já supera 15 anos no governo?
Pedro Barros – No último sábado, observei de perto as
manifestações da oposição e do governo e em ambas havia clima de absoluta
normalidade e proteção policial para evitar possíveis confrontos. Destaca-se
que a da oposição foi realizada em El Marqués, no município de Sucre, governado
pela oposição, no estado de Miranda, governado pela oposição. Os maiores
confrontos até agora foram na Praça de Altamira, município de Chacao, governado
pela oposição, estado de Miranda, governado por Capriles, que tem
sistematicamente criticado a prática de guarimbas (barricadas para bloqueio de
ruas e avenidas, que em Caracas acontecem quase que exclusivamente em bairros
nobres). Pelo que é reportado, os protestos no estado de Táchira, na fronteira
com a Colômbia, que foram mais fortes, também têm perdido intensidade.
Nem sempre é fácil diagnosticar ou traçar cenários sobre o que se passa
na Venezuela. Correndo o risco de errar redondamente, diria que os protestos
vão esfriar nos próximos dias, serão rearticulados e voltarão com força no
próximo período, podendo coincidir com a Copa do Mundo de futebol.
O chavismo é o movimento que marcou a primeira tentativa de ruptura com
o Consenso de Washington na América Latina. Depois vieram mais de uma dezena de
governos, com diferentes tonalidades, mas com um objetivo parecido, de
diminuição das desigualdades e não alinhamento automático aos Estados Unidos. A
resposta fácil sobre as perspectivas seria indicar que o desafio é garantir o
aprofundamento das conquistas sociais em um cenário econômico e, talvez,
político adverso. Sistematicamente, tentaram apresentar a morte de Chávez como
o fim do chavismo, mas, com o passar dos meses, me parece claro que estamos
apenas no começo de uma longa história.
Provavelmente, mais do que qualquer outro, o posicionamento sobre o que
se passa na Venezuela indica as posições que cada um tem sobre o futuro da
América Latina. As notas do Mercosul, da Unasul e da Celac, ainda que
diferentes, indicam uma região mais unida, preocupada com a estabilidade e
progresso mútuos. Essa tem sido a posição da presidente Dilma Rousseff, que foi
afirmativa nos momentos mais decisivos da história recente da Venezuela, seja
para a entrada do país no Mercosul, seja para o reconhecimento internacional
das eleições de abril de 2013.
Agora há pouco, em Bruxelas, ela foi novamente assertiva ao declarar que
o diálogo, o consenso e a construção democrática são mais adequados do que
qualquer tipo de ruptura institucional e que o caos, que é desejado por grupos
minoritários na Venezuela, seria a desconstrução social, econômica e política.
Por várias vezes, agora e antes, a presidente lembrou que é importante enxergar
os avanços sociais da Venezuela.
Em perspectiva histórica e para além da área social, provavelmente o
governo Chávez será reconhecido como uma guinada para o sul e em prol da
integração regional.
Valéria
Nader – Jornalista e
economista, é editora do Correio da Cidadania – 28.02.2014
IN
Correio da Cidadania – http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=9381%3Asubmanchete250214&catid=34%3Amanchete