Jessé Souza – “É o apartheid social entre classe
média europeizada e classes populares "bárbaras" de que falei. Ele
cria regras não escritas e, por causa disso mesmo, muito eficientes - uma
espécie de "constituição pré-jurídica" para a manutenção do racismo
de classe que é nossa verdadeira lei maior. É esse apartheid que criou o tipo
de polícia e a cultura da violência que temos. Ainda que a classe média - e
suas frações mais conservadoras - não decida mais eleições majoritárias no Brasil,
é ela que detém a hegemonia política e cultural e influencia não só amplos
setores das próprias classes populares, mas também decide o que é julgado nos
tribunais, o que é publicado nos jornais, dito na TV e o que é discutido nas
universidades”.
Ivan Marsiglia
Grito
dos quase incluídos? Flash mob da periferia? Repique das jornadas de junho?
Marcha do desprezo pela cultura democrática? Ou apenas e tão somente "um
rolê"?
O País
discute o que vai pela cabeça daqueles rapazes de bombeta e bermudas, que se
endividam para comprar um tênis Mizuno, a congestionar os corredores dos
shopping centers - estes também chamados aqui e ali de "templos do
consumo", "espaço privado aberto ao público" ou "única
opção de lazer na quebrada", de acordo com o gosto do freguês. Os
rolezinhos entraram com tudo no vocabulário político nacional e andaram nas
bocas do prefeito Fernando Haddad, do governador Geraldo Alckmin e até da presidente
Dilma Rousseff.
Para o
sociólogo potiguar Jessé Souza, doutor pela Universidade de Heidelberg, na
Alemanha, e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, com todas as
interpretações que se possam atribuir ao fenômeno (e, em especial, às reações
da sociedade brasileira a ele), uma coisa é certa: estamos diante de "um
reflexo do apartheid brasileiro que separa, como se fossem dois planetas
distintos, os brasileiros ‘europeizados’, da classe média verdadeira, e os
percebidos como ‘bárbaros’, das classes populares".
Autor
do já clássico A Ralé Brasileira - Quem É e Como Vive, publicado em 2009, e de
Os Batalhadores Brasileiros - Nova Classe Média ou Nova Classe Trabalhadora? ,
em 2012, ambos pela Editora UFMG, Jessé refuta o conceito de "nova classe
média", exaltado no Brasil na última década. A precarização dessa camada
"que trabalha muito e ganha pouco", diz, não permite definição tão
positiva. Na entrevista a seguir, o sociólogo afirma ver conotação política
(mas não planejada) nos rolês, alerta para o desejo de reconhecimento desses
jovens e critica a visão estreita dos que, à direita ou à esquerda, concebem os
sujeitos sociais "unicamente determinados e explicados por estímulos
econômicos".
Ivan
Marsiglia – Para a antropóloga Alba Zaluar, o rolezinho 'é uma brincadeira, não
um movimento social'. Para o escritor Paulo Lins, 'uma manifestação
extremamente política e organizada'. Para a cientista social Rosana
Pinheiro-Machado, 'o assunto mais caro à minha sensibilidade acadêmica e
política'. E para o sr.?
Jessé Souza – Apenas estudos empíricos poderiam dar conta da
questão da origem de classe desses jovens. Contudo, a fronteira entre nossos
desclassificados sociais - que eu chamo provocativamente de "ralé" -
e a nova classe trabalhadora precária, mal rotulada entre nós de "nova
classe média", é muito fluida. O que nos permite falar de classes
populares em sentido geral. Esses fatos são mais um reflexo do apartheid
brasileiro que separa, como se fossem dois planetas distintos, o espaço de
sociabilidade dos brasileiros "europeizados", da classe média
verdadeira, e os brasileiros percebidos como "bárbaros", das classes
populares. Desde que a barbárie fique restrita ao mundo das classes populares,
ela não é um problema real. E a classe média finge que se choca de tempos em
tempos com o que acontece nas prisões - como se todo mundo já não soubesse o
que lá acontece, como os alemães com os campos de concentração na Alemanha
nazista - ou com a violência nas favelas.
Ivan
Marsiglia – Muitos frequentadores se dizem chocados com a falta de segurança
'até no shopping'...
Jessé Souza – O problema só se torna sério e ameaçador quando se
rompe com as linhas de demarcação implícitas do nosso apartheid real, ainda que
não legal. E as classes populares passam a fazer de conta que não sabem qual é
seu lugar. É isso que confere caráter político a essas aparentes brincadeiras
de jovens da periferia. Eles ameaçam a fronteira de classes, vivida por todos
nós de modo implícito.
Ivan
Marsiglia – Mas essa 'nova classe média', ou 'classe trabalhadora precária',
como o sr. prefere, não se tornou um mercado interessante para o comércio e as
instituições bancárias que oferecem crédito popular?
Jessé Souza – É verdade e esse é um ponto muito interessante. O
mercado se interessa de modo crescente por essa classe ascendente porque quer
saber como vender para ela. Mas fazer comércio com alguém não significa
"aceitá-lo" ou "compreendê-lo", ainda que seja sem dúvida
um primeiro passo.
Ivan
Marsiglia – Em uma entrevista anos antes das manifestações de junho, um dos
integrantes do Movimento Passe Livre disse que mal podia esperar a chegada das
classes D e E ao Facebook. A capacidade de mobilização via redes sociais dos
jovens de periferia hoje, e seu intercâmbio com filhos de classe média, muda
esse panorama?
Jessé Souza – Sem dúvida existem novas oportunidades para a
comunicação e a ação política através da mídia digital. Como os meios digitais
são mais difíceis de controlar, eles tendem a ser mais alternativos e plurais.
Praticamente todos os movimentos políticos importantes nos últimos tempos
tiveram participação decisiva da internet. Mas é importante ressaltar que os
meios digitais são apenas "meios", não criam ou produzem uma cultura
política alternativa, ainda que possam fazer circular informações.
Ivan
Marsiglia – A reação dos lojistas, impetrando liminares para impedir essas
reuniões, e triagens nas portas dos shoppings, é legítima?
Jessé Souza – Os shopping centers no Brasil sempre conviveram com
uma classe que vinha para comprar e outra que vinha para passear e olhar as
vitrines. Especialmente nos fins de semana, o público muda, com pessoas das
classes populares com poucas alternativas de lazer e jovens com consumo
reduzido e concentrado nas praças de alimentação. A novidade agora é que, em
vez da deferência e vergonha das classes que se sabem inferiores, entra em cena
certo "protagonismo de classe popular" - um fenômeno interessante que
parece ter a cidade de São Paulo como epicentro, do tipo "é nóis na fita,
mano". As tentativas de restrição e o medo advêm antes de tudo dessa
mudança de atitude.
Ivan
Marsiglia – Se há mesmo conotação política nos rolês, por que eles ocorrem
basicamente em estabelecimentos periféricos e não nos nobres?
Jessé Souza – Afirmar
que existe conotação política nesses eventos não é o mesmo que dizer que sejam
politicamente planejados. Se eles vão ou não desenvolver formas mais
organizadas de intervenção no espaço público antes restrito à classe média
verdadeira é uma questão em aberto.
Ivan
Marsiglia – E a polícia, que repetiu o minueto das manifestações de junho:
repressão indiscriminada primeiro e, após a grita nos meios de comunicação,
promessa de coibir crimes e abusos?
Jessé Souza – O problema real não é, em primeiro lugar pelo
menos, nem da polícia nem das autoridades. É o apartheid social entre classe
média europeizada e classes populares "bárbaras" de que falei. Ele
cria regras não escritas e, por causa disso mesmo, muito eficientes - uma
espécie de "constituição pré-jurídica" para a manutenção do racismo
de classe que é nossa verdadeira lei maior. É esse apartheid que criou o tipo
de polícia e a cultura da violência que temos. Ainda que a classe média - e
suas frações mais conservadoras - não decida mais eleições majoritárias no Brasil,
é ela que detém a hegemonia política e cultural e influencia não só amplos
setores das próprias classes populares, mas também decide o que é julgado nos
tribunais, o que é publicado nos jornais, dito na TV e o que é discutido nas
universidades. Ela domina a esfera pública que decide o que é certo e errado na
prática cotidiana real e é por isso que temos uma agenda de "políticas
públicas informais" que inclui, por exemplo, matança indiscriminada e
violência contra os pobres sem que ninguém - salvo em exceções dramatizadas
pela mídia como o caso de Amarildo no Rio - seja responsabilizado. A ação do
Estado e de seus órgãos é muito mais decidida por essas leis não escritas da
sociedade do que pelos seus estatutos escritos para inglês ver.
Ivan
Marsiglia – O chamado 'funk ostentação', trilha sonora mais comum nos
encontros, mostra a adesão incondicional desses jovens à cultura do consumo ou
o sr. vê alguma ironia nessa exaltação tão superlativa de símbolos de status?
Jessé Souza – Não são apenas as classes populares que praticam
uma adesão incondicional ao consumo. As classes do privilégio - tanto os
endinheirados que concentram em poucas mãos a riqueza nacional em proporções
grotescas, se compararmos com as democracias europeias, quanto a classe média
verdadeira se definem e se hierarquizam entre si pelo consumo material, antes
de tudo. É necessária grande incorporação de capital cultural - ou seja, a
apropriação pelo indivíduo de formas de conhecimento útil ou valorizado
socialmente - para fazer frente à força do prestígio social imediato que o
consumo material provoca. Acho que as classes populares só desenvolvem uma
distância crítica em relação ao consumo em circunstâncias excepcionais. Certas
subculturas como a do funk ou do rap podem manter uma postura ambígua, ainda
que em um meio também culturalmente carente.
Ivan
Marsiglia – Defensores dos avanços sociais dos últimos anos argumentam que
algum tipo de inclusão suscita novas reivindicações e avanços. Já os críticos
sugerem correção de rumo urgente, que troque o paradigma do consumo pelo de
cidadania. O que o sr. acha?
Jessé Souza – Apesar
de considerar os avanços sociais dos últimos anos muito tímidos, eles são
relevantes dentro de um contexto de uma sociedade tão conservadora e
socialmente irresponsável como a nossa. Então eu me alinho com os primeiros, já
que é historicamente inegável que o aprendizado político e social, que
pressupõe mudança paulatina de consciência se vem para ficar, segue a lógica do
desenvolvimento passo a passo. De resto, essa separação entre inclusão social
por consumo e inclusão social por direitos é completamente artificial e
retórica. Todas as lutas das classes populares no Ocidente nos últimos 200 anos
têm sido lutas pela redistribuição da riqueza social, material ou não, as
quais, quando vitoriosas e institucionalizadas, se consolidam em novos
direitos.
Ivan
Marsiglia – Que medidas seriam menos tímidas?
Jessé Souza – Para responder a essa pergunta é preciso falar da
extrema pobreza de nosso debate público. É tanto uma pobreza de ideias quanto
uma pobreza moral e política, que se reforçam mutuamente. Há uma percepção
generalizada do comportamento humano como sendo unicamente determinado e
explicado por estímulos econômicos. Desconhece-se, por exemplo, que sem
autoconfiança, autoestima e reconhecimento social, não existe
"comportamento econômico racional". Boa parte da limitação da
política do atual governo reside aí. Mas não é só o governo. A sociedade também
adere a essa cegueira economicista do mundo - e culpa as vítimas por seu
próprio abandono social. É o que causa o desprezo visceral de boa parte de
nossa classe média pelos pobres, uma cegueira que impede sentimentos efetivos
de solidariedade e de responsabilidade política pelo destino coletivo. Todas as
sociedades que lograram, com grau variável de sucesso, o resgate social e
econômico das grandes massas empreenderam "revoluções de consciência
coletiva", das quais estamos a anos-luz de distância.
Ivan
Marsiglia – Depoimentos de jovens que participam desses encontros poderiam ser
resumidos na frase: ‘É só um rolê’. Não estaríamos assistindo apenas à velha e
comum inconsequência juvenil de desafiar os pais e as normas preestabelecidas
para se divertir?
Jessé Souza – Sem dúvida esse aspecto me parece fundamental.
Existe um corte geracional que sugere aspectos da subcultura jovem enquanto
rebelião contra regras sociais e figuras de autoridade. A novidade ameaçadora é
que são jovens das classes populares que se rebelam contra as regras não
escritas, mas "sentidas" e percebidas por todos nós, da divisão
classista dos espaços de sociabilidade. A classe média verdadeira,
"europeizada" - que se percebe como estrangeira na própria terra - se
sente ameaçada pelos "bárbaros" das classes populares, em um fenômeno
que tende a ter diversos novos capítulos no Brasil daqui para a frente.
Jessé Souza - Sociólogo, Professor na Universidade Federal de Juiz de Fora
Ivan
Marsiglia
– 18.01.2014
IN
Estado de São Paulo – http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,o-role-da-rale,1120064,0.htm