quarta-feira, 5 de março de 2014

O rolê da ralé


Jessé  Souza – “É o apartheid social entre classe média europeizada e classes populares "bárbaras" de que falei. Ele cria regras não escritas e, por causa disso mesmo, muito eficientes - uma espécie de "constituição pré-jurídica" para a manutenção do racismo de classe que é nossa verdadeira lei maior. É esse apartheid que criou o tipo de polícia e a cultura da violência que temos. Ainda que a classe média - e suas frações mais conservadoras - não decida mais eleições majoritárias no Brasil, é ela que detém a hegemonia política e cultural e influencia não só amplos setores das próprias classes populares, mas também decide o que é julgado nos tribunais, o que é publicado nos jornais, dito na TV e o que é discutido nas universidades”.

Ivan Marsiglia
Grito dos quase incluídos? Flash mob da periferia? Repique das jornadas de junho? Marcha do desprezo pela cultura democrática? Ou apenas e tão somente "um rolê"?
O País discute o que vai pela cabeça daqueles rapazes de bombeta e bermudas, que se endividam para comprar um tênis Mizuno, a congestionar os corredores dos shopping centers - estes também chamados aqui e ali de "templos do consumo", "espaço privado aberto ao público" ou "única opção de lazer na quebrada", de acordo com o gosto do freguês. Os rolezinhos entraram com tudo no vocabulário político nacional e andaram nas bocas do prefeito Fernando Haddad, do governador Geraldo Alckmin e até da presidente Dilma Rousseff.
Para o sociólogo potiguar Jessé Souza, doutor pela Universidade de Heidelberg, na Alemanha, e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, com todas as interpretações que se possam atribuir ao fenômeno (e, em especial, às reações da sociedade brasileira a ele), uma coisa é certa: estamos diante de "um reflexo do apartheid brasileiro que separa, como se fossem dois planetas distintos, os brasileiros ‘europeizados’, da classe média verdadeira, e os percebidos como ‘bárbaros’, das classes populares".
Autor do já clássico A Ralé Brasileira - Quem É e Como Vive, publicado em 2009, e de Os Batalhadores Brasileiros - Nova Classe Média ou Nova Classe Trabalhadora? , em 2012, ambos pela Editora UFMG, Jessé refuta o conceito de "nova classe média", exaltado no Brasil na última década. A precarização dessa camada "que trabalha muito e ganha pouco", diz, não permite definição tão positiva. Na entrevista a seguir, o sociólogo afirma ver conotação política (mas não planejada) nos rolês, alerta para o desejo de reconhecimento desses jovens e critica a visão estreita dos que, à direita ou à esquerda, concebem os sujeitos sociais "unicamente determinados e explicados por estímulos econômicos".

Ivan Marsiglia – Para a antropóloga Alba Zaluar, o rolezinho 'é uma brincadeira, não um movimento social'. Para o escritor Paulo Lins, 'uma manifestação extremamente política e organizada'. Para a cientista social Rosana Pinheiro-Machado, 'o assunto mais caro à minha sensibilidade acadêmica e política'. E para o sr.?
Jessé Souza – Apenas estudos empíricos poderiam dar conta da questão da origem de classe desses jovens. Contudo, a fronteira entre nossos desclassificados sociais - que eu chamo provocativamente de "ralé" - e a nova classe trabalhadora precária, mal rotulada entre nós de "nova classe média", é muito fluida. O que nos permite falar de classes populares em sentido geral. Esses fatos são mais um reflexo do apartheid brasileiro que separa, como se fossem dois planetas distintos, o espaço de sociabilidade dos brasileiros "europeizados", da classe média verdadeira, e os brasileiros percebidos como "bárbaros", das classes populares. Desde que a barbárie fique restrita ao mundo das classes populares, ela não é um problema real. E a classe média finge que se choca de tempos em tempos com o que acontece nas prisões - como se todo mundo já não soubesse o que lá acontece, como os alemães com os campos de concentração na Alemanha nazista - ou com a violência nas favelas.

Ivan Marsiglia – Muitos frequentadores se dizem chocados com a falta de segurança 'até no shopping'...
Jessé Souza – O problema só se torna sério e ameaçador quando se rompe com as linhas de demarcação implícitas do nosso apartheid real, ainda que não legal. E as classes populares passam a fazer de conta que não sabem qual é seu lugar. É isso que confere caráter político a essas aparentes brincadeiras de jovens da periferia. Eles ameaçam a fronteira de classes, vivida por todos nós de modo implícito.

Ivan Marsiglia – Mas essa 'nova classe média', ou 'classe trabalhadora precária', como o sr. prefere, não se tornou um mercado interessante para o comércio e as instituições bancárias que oferecem crédito popular?
Jessé Souza – É verdade e esse é um ponto muito interessante. O mercado se interessa de modo crescente por essa classe ascendente porque quer saber como vender para ela. Mas fazer comércio com alguém não significa "aceitá-lo" ou "compreendê-lo", ainda que seja sem dúvida um primeiro passo.

Ivan Marsiglia – Em uma entrevista anos antes das manifestações de junho, um dos integrantes do Movimento Passe Livre disse que mal podia esperar a chegada das classes D e E ao Facebook. A capacidade de mobilização via redes sociais dos jovens de periferia hoje, e seu intercâmbio com filhos de classe média, muda esse panorama?
Jessé Souza – Sem dúvida existem novas oportunidades para a comunicação e a ação política através da mídia digital. Como os meios digitais são mais difíceis de controlar, eles tendem a ser mais alternativos e plurais. Praticamente todos os movimentos políticos importantes nos últimos tempos tiveram participação decisiva da internet. Mas é importante ressaltar que os meios digitais são apenas "meios", não criam ou produzem uma cultura política alternativa, ainda que possam fazer circular informações.

Ivan Marsiglia – A reação dos lojistas, impetrando liminares para impedir essas reuniões, e triagens nas portas dos shoppings, é legítima?
Jessé Souza – Os shopping centers no Brasil sempre conviveram com uma classe que vinha para comprar e outra que vinha para passear e olhar as vitrines. Especialmente nos fins de semana, o público muda, com pessoas das classes populares com poucas alternativas de lazer e jovens com consumo reduzido e concentrado nas praças de alimentação. A novidade agora é que, em vez da deferência e vergonha das classes que se sabem inferiores, entra em cena certo "protagonismo de classe popular" - um fenômeno interessante que parece ter a cidade de São Paulo como epicentro, do tipo "é nóis na fita, mano". As tentativas de restrição e o medo advêm antes de tudo dessa mudança de atitude.

Ivan Marsiglia – Se há mesmo conotação política nos rolês, por que eles ocorrem basicamente em estabelecimentos periféricos e não nos nobres?
Jessé Souza – Afirmar que existe conotação política nesses eventos não é o mesmo que dizer que sejam politicamente planejados. Se eles vão ou não desenvolver formas mais organizadas de intervenção no espaço público antes restrito à classe média verdadeira é uma questão em aberto.

Ivan Marsiglia – E a polícia, que repetiu o minueto das manifestações de junho: repressão indiscriminada primeiro e, após a grita nos meios de comunicação, promessa de coibir crimes e abusos?
Jessé Souza – O problema real não é, em primeiro lugar pelo menos, nem da polícia nem das autoridades. É o apartheid social entre classe média europeizada e classes populares "bárbaras" de que falei. Ele cria regras não escritas e, por causa disso mesmo, muito eficientes - uma espécie de "constituição pré-jurídica" para a manutenção do racismo de classe que é nossa verdadeira lei maior. É esse apartheid que criou o tipo de polícia e a cultura da violência que temos. Ainda que a classe média - e suas frações mais conservadoras - não decida mais eleições majoritárias no Brasil, é ela que detém a hegemonia política e cultural e influencia não só amplos setores das próprias classes populares, mas também decide o que é julgado nos tribunais, o que é publicado nos jornais, dito na TV e o que é discutido nas universidades. Ela domina a esfera pública que decide o que é certo e errado na prática cotidiana real e é por isso que temos uma agenda de "políticas públicas informais" que inclui, por exemplo, matança indiscriminada e violência contra os pobres sem que ninguém - salvo em exceções dramatizadas pela mídia como o caso de Amarildo no Rio - seja responsabilizado. A ação do Estado e de seus órgãos é muito mais decidida por essas leis não escritas da sociedade do que pelos seus estatutos escritos para inglês ver.

Ivan Marsiglia – O chamado 'funk ostentação', trilha sonora mais comum nos encontros, mostra a adesão incondicional desses jovens à cultura do consumo ou o sr. vê alguma ironia nessa exaltação tão superlativa de símbolos de status?
Jessé Souza – Não são apenas as classes populares que praticam uma adesão incondicional ao consumo. As classes do privilégio - tanto os endinheirados que concentram em poucas mãos a riqueza nacional em proporções grotescas, se compararmos com as democracias europeias, quanto a classe média verdadeira se definem e se hierarquizam entre si pelo consumo material, antes de tudo. É necessária grande incorporação de capital cultural - ou seja, a apropriação pelo indivíduo de formas de conhecimento útil ou valorizado socialmente - para fazer frente à força do prestígio social imediato que o consumo material provoca. Acho que as classes populares só desenvolvem uma distância crítica em relação ao consumo em circunstâncias excepcionais. Certas subculturas como a do funk ou do rap podem manter uma postura ambígua, ainda que em um meio também culturalmente carente.

Ivan Marsiglia – Defensores dos avanços sociais dos últimos anos argumentam que algum tipo de inclusão suscita novas reivindicações e avanços. Já os críticos sugerem correção de rumo urgente, que troque o paradigma do consumo pelo de cidadania. O que o sr. acha?
Jessé Souza – Apesar de considerar os avanços sociais dos últimos anos muito tímidos, eles são relevantes dentro de um contexto de uma sociedade tão conservadora e socialmente irresponsável como a nossa. Então eu me alinho com os primeiros, já que é historicamente inegável que o aprendizado político e social, que pressupõe mudança paulatina de consciência se vem para ficar, segue a lógica do desenvolvimento passo a passo. De resto, essa separação entre inclusão social por consumo e inclusão social por direitos é completamente artificial e retórica. Todas as lutas das classes populares no Ocidente nos últimos 200 anos têm sido lutas pela redistribuição da riqueza social, material ou não, as quais, quando vitoriosas e institucionalizadas, se consolidam em novos direitos.

Ivan Marsiglia – Que medidas seriam menos tímidas?
Jessé Souza – Para responder a essa pergunta é preciso falar da extrema pobreza de nosso debate público. É tanto uma pobreza de ideias quanto uma pobreza moral e política, que se reforçam mutuamente. Há uma percepção generalizada do comportamento humano como sendo unicamente determinado e explicado por estímulos econômicos. Desconhece-se, por exemplo, que sem autoconfiança, autoestima e reconhecimento social, não existe "comportamento econômico racional". Boa parte da limitação da política do atual governo reside aí. Mas não é só o governo. A sociedade também adere a essa cegueira economicista do mundo - e culpa as vítimas por seu próprio abandono social. É o que causa o desprezo visceral de boa parte de nossa classe média pelos pobres, uma cegueira que impede sentimentos efetivos de solidariedade e de responsabilidade política pelo destino coletivo. Todas as sociedades que lograram, com grau variável de sucesso, o resgate social e econômico das grandes massas empreenderam "revoluções de consciência coletiva", das quais estamos a anos-luz de distância.

Ivan Marsiglia – Depoimentos de jovens que participam desses encontros poderiam ser resumidos na frase: ‘É só um rolê’. Não estaríamos assistindo apenas à velha e comum inconsequência juvenil de desafiar os pais e as normas preestabelecidas para se divertir?
Jessé Souza – Sem dúvida esse aspecto me parece fundamental. Existe um corte geracional que sugere aspectos da subcultura jovem enquanto rebelião contra regras sociais e figuras de autoridade. A novidade ameaçadora é que são jovens das classes populares que se rebelam contra as regras não escritas, mas "sentidas" e percebidas por todos nós, da divisão classista dos espaços de sociabilidade. A classe média verdadeira, "europeizada" - que se percebe como estrangeira na própria terra - se sente ameaçada pelos "bárbaros" das classes populares, em um fenômeno que tende a ter diversos novos capítulos no Brasil daqui para a frente.



Jessé Souza - Sociólogo, Professor na Universidade Federal de Juiz de Fora
Ivan Marsiglia – 18.01.2014