Uma alternativa para elevar os recursos
públicos é fechar seus ralos. No lado dos gastos, é preciso controle para
evitar desvios com corrupção, e aprimorar a alocação. Já no lado dos ingressos,
é urgente combater os buracos negros no campo tributário, que impedem muitos
recursos de ingressar nos cofres estatais.
Clair Maria Hickmann, Dão Real dos Santos , Marcelo Ramos Oliveira
A demanda por recursos públicos é cada vez maior. A briga pela
apropriação do “bolo” é quase uma guerra. Nas recentes manifestações públicas
brasileiras, surgiram novas e diversas demandas, desde o “passe livre”, saúde,
educação, até melhorias do serviço público em geral. A resposta dos governantes
é sempre a mesma: “Não há recurso público”. Mas será que realmente não existem
recursos suficientes para atender às demandas da sociedade?
Inicialmente, cabe dizer que a aplicação e a origem dos recursos
públicos são sempre uma decisão política. Ao governo cabe dizer onde os
recursos serão investidos, e isso também significa dizer onde não serão
aplicados. Cabe igualmente ao governo dizer de onde e de quem os recursos serão
retirados, e de quem não serão cobrados, ou seja, quem vai e quem não vai pagar
a conta. E governo aqui deve ser lido em sua acepção mais ampla, envolvendo
todo seu conjunto de instituições. Trata-se, enfim, de uma opção política.
Uma alternativa para aumentar os recursos públicos disponíveis é fechar
seus diversos ralos. No lado dos gastos e despesas, é necessário melhorar o
controle e a gestão da coisa pública para evitar desvios com corrupção, além de
melhorar a qualidade da alocação dos recursos. Já no lado dos ingressos, é
urgente combater os buracos negros no campo tributário, que fazem que muitos
recursos públicos deixem de ingressar nos cofres estatais.
Vejamos, portanto, alguns ralos do dinheiro público no campo tributário.
Estes ocorrem em no mínimo três dimensões. A primeira está no espaço da
legalidade formal, em que leis e outras peças normativas exoneram as classes
mais abastadas de contribuir com o custo do Estado. Outra se refere aos
mecanismos de evasão ou elisão que proporcionam tantos espaços para os
planejamentos tributários, sobretudo pela desregulamentação dos fluxos
internacionais comerciais e financeiros, paraísos fiscais e países com
tributação favorecida. Há ainda uma terceira dimensão, que compreende os mais
variados mecanismos técnicos que impedem ou dificultam a cobrança dos créditos
tributários devidamente lançados. Esse terceiro aspecto envolve ainda a
dificuldade de manutenção dos créditos nas esferas de julgamento e os diversos
artifícios de “blindagem patrimonial” usados por devedores “poderosos”.
Cada uma dessas três dimensões, embora se materialize de forma distinta
no campo fático, decorre de uma mesma causa e produz efeitos convergentes. A
submissão da política aos interesses daquelas minorias privilegiadas que detêm
a maior fatia das riquezas sociais produz a apropriação do público pelo
privado, perpetuando um círculo vicioso difícil de ser quebrado e que pode ser
representado na expressão “tem poder quem tem dinheiro e tem dinheiro quem tem
poder”. O efeito, portanto, não poderia ser outro senão a ampliação contínua
das brechas e dos mecanismos para que esses setores não sejam alcançados pela
tributação. Segundo Antonio David Cattani, em A riqueza desmistificada (Marcavisual,
2013), “corporações e indivíduos em condições socioeconômicas privilegiadas, em
especial os super-ricos, têm capacidade de manejar uma série de expedientes que
lhes permitem não obedecer aos regramentos válidos para todos, [...] elisão e
evasão fiscais, ocultação de bens são práticas mais facilmente utilizadas por
aqueles capazes de usar seus incomensuráveis recursos para evitar que a
tributação estatal recaia sobre suas fortunas”.
A dimensão da legalidade define formalmente a abrangência da “mão” do
Estado, aonde e como ela pode ir com o intuito de buscar os recursos que
financiem sua atuação. É nessa dimensão que as classes dominantes constroem os
conceitos ideológicos que regerão e dominarão a sociedade. Um exemplo disso é a
contestação geral de que a carga tributária, atualmente em torno de 35% do PIB,
é muito alta, o que reforça em todos uma ideia de consenso a legitimá-la,
levando a crer que todos os brasileiros pagam em torno desse percentual.
Todavia, vemos que a carga não recai uniformemente, mas, de modo paradoxal,
concentra-se sobre as camadas menos aquinhoadas da sociedade.1 É
difícil explicar, segundo princípios de equidade e de justiça fiscal, que
alguns tipos de renda tenham tratamento diferenciado simplesmente em razão de
sua origem. É o caso da isenção do Imposto de Renda na distribuição de lucros e
dividendos. Por outro lado, rendimentos oriundos do trabalho são tributados
normalmente.
Renúncia fiscal – JCP
Entre tantos casos de construções legais de renúncias e benefícios fiscais,
escolhemos escrever nesta edição sobre a dos juros sobre o capital próprio
(JCP). Esse mecanismo permite que as empresas paguem a seus sócios juros sobre
o capital investido, criando com isso uma despesa fictícia na pessoa jurídica
que reduz o lucro tributável de Imposto de Renda e da contribuição social sobre
o lucro em 34%. Além disso, o acionista contemplado com a distribuição dos JCP
é privilegiado ao ser tributado com uma alíquota única de 15% de Imposto de
Renda na fonte. No final dessa conta, há uma renúncia fiscal de 19% no
recolhimento de Imposto de Renda. Trata-se, na verdade, de uma modalidade de
distribuição dos lucros mascarada por um artifício fiscal.
Destaque-se aqui, novamente, o privilégio na tributação do rendimento do
capital (juros sobre o capital próprio), que paga apenas 15%, e ainda
exclusivamente na fonte, o que quer dizer que esse rendimento não é levado à
incidência da tabela progressiva, cuja alíquota chega a 27,5%. Trata-se de mais
uma forma “legal” de burlar o princípio constitucional da progressividade,
criado para tornar a tributação mais justa.
Nas contas do governo federal, os JCP não são considerados renúncia
fiscal. No entanto, é importante esclarecer que, de acordo com a Lei de
Responsabilidade Fiscal, a renúncia fiscal compreende também “alteração de
alíquota ou modificação de base de cálculo que implique redução discriminada de
tributos ou contribuições, e outros benefícios que correspondam a tratamento
diferenciado”.2
Qual será o valor dessa renúncia fiscal?Seguramente, alguns bilhões. E o
valor das outras tantas renúncias e privilégios tributários existentes nas três
esferas de governo?
Por que o governo não revela o montante dessas renúncias? A sociedade
pode e deve exigir dos governantes a divulgação desses valores. Será necessário
o povo ir às ruas para reivindicar a transparência dessas renúncias fiscais que
já deveriam ser divulgadas?
Evasão ou elisão fiscal
Uma segunda dimensão é aquela definida pela omissão do Estado em exercer
sua jurisdição delimitando as áreas de atuação dos agentes econômicos que se
aproveitam para se evadir de suas obrigações tributárias por meio dos mais
variados esquemas. O “jeitinho brasileiro” é pródigo em inventar “esquemas” e
“interpretações” em que a forma é mais importante que a substância, de modo a
possibilitar a fuga dos tributos. O uso de paraísos fiscais, pelos quais
transitam apenas papéis para transferir lucros e impostos de um ponto a outro
do planeta, é a ponta do iceberg da fuga dos capitais de suas legítimas
obrigações tributárias.
Nas exportações
Uma prática muito comum das grandes corporações é criar uma filial ou
empresa coligada em um paraíso fiscal e/ou país com baixa tributação e
transferir seus lucros para esses locais. Grandes empresas exportadoras de commodities (ferro,
soja, sucos) e de outras atividades vendem suas mercadorias para suas próprias
filiais, localizadas em paraísos fiscais, a um preço muito baixo, reduzindo o
lucro no Brasil. Essas filiais, por sua vez, refaturam o mesmo produto para o
cliente final, porém agora a preço de mercado. A mercadoria vai direto ao
cliente final, mas o lucro fica na filial brasileira localizada no paraíso
fiscal, onde não paga tributo algum ou paga muito pouco. Nesse caso, sob o
aspecto formal, o adquirente da mercadoria é uma empresa, por exemplo, da
Suíça, mas o destino final da mercadoria é outro país. Os recursos que
ingressam no Brasil são aqueles faturados para o paraíso fiscal, e não aqueles
que o cliente final efetivamente pagou.
O Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC)3 tem
divulgado que o maior comprador dos produtos brasileiros é a China, seguido dos
Estados Unidos. Mas esse estudo considera que o país comprador é aquele do
destino da mercadoria. Contudo, se fosse feito um levantamento para identificar
o país adquirente, de acordo com os documentos fiscais, o resultado seria
chocante, porque Suíça e Ilhas Cayman, provavelmente, apareceriam como os dois
maiores compradores das exportações brasileiras. Para o resultado do comércio
exterior, isso pode não ser relevante, mas para os cofres públicos brasileiros
representa uma enorme perda de arrecadação tributária.
Bem, você pode dizer que o lucro da filial brasileira no exterior deve
ser tributado no Brasil. Sim, de fato, e a legislação brasileira assim prevê.
Mas aí começa outro problema que parece interminável: essas corporações
interpretam que essa tributação somente pode ocorrer quando o lucro for
efetivamente disponibilizado no Brasil (quando será?) e recorreram à Justiça,
fazendo que essa discussão se prolongue por mais de dez anos. Sabe-se que a
pressão desses grupos é grande para ganhar a disputa e até para mudar a
legislação. Alegam que o “Brasil precisa incentivar a expansão das empresas
brasileiras no exterior”. Não nos parece que deva ser essa a política do
Brasil, quando temos carência enorme de capital e financiamento de
infraestrutura.
Nas importações
Nas operações de importação, ocorrem práticas semelhantes, porém em
sentido contrário. Grandes empresas, principalmente multinacionais, importam
mercadorias, bens e serviços por intermédio de uma companhia vinculada e/ou
localizada em um paraíso fiscal. O preço da mercadoria, porém, é superfaturado
para aumentar o custo brasileiro e, em consequência, reduzir o lucro
tributável. O objetivo final é o mesmo: transferir lucros para um local onde a
tributação seja nula ou muito baixa.
Há uma legislação específica de “preço de transferência” que limita
essas operações, mas sua aplicação é complexa e muito questionada
juridicamente, e as discussões nos tribunais arrastam-se por muitos anos. Vale
lembrar que se trata de planejamentos tributários internacionais, elaborados
pelas maiores empresas e por grandes bancas de advogados, e a influência desses
grupos no meio político e no financiamento de campanhas eleitorais é bastante
conhecida.
Além disso, a legislação tributária nunca alcança todas as situações,
muitas vezes por falta de vontade política, outras porque as empresas estão
sempre criando novos artifícios para burlar o fisco.
Paraísos fiscais, o grande buraco negro mundial
Recentemente, em nível internacional, tanto os países do G20 como os do
G8 reconhecem que a exagerada desregulamentação dos fluxos comerciais e
financeiros internacionais, promovida pela globalização para dar eficácia à
fragmentação dos processos produtivos pelo mundo, tem de fato produzido uma
profunda erosão das bases tributárias em todos os países, na medida em que
permite que as grandes corporações possam transferir com facilidade grande
parte de seus lucros para os paraísos fiscais. Segundo estudos produzidos por
organizações internacionais,4 esse fenômeno faz que
essas grandes corporações empresariais não paguem mais do que 5% de impostos
sobre seus lucros globais obtidos ao redor do mundo, e os estudos visam propor
medidas para reduzir esses impactos negativos. Paradoxalmente, na próxima
reunião marcada pela Organização Mundial do Comércio, para dezembro deste ano,
em Bali, na Indonésia, está prevista a assinatura do Acordo de Facilitação de
Comércio Internacional, medida fortemente influenciada pelo interesse das
grandes empresas e que objetiva impor aos Estados nacionais inúmeras restrições
ao seu poder de controlar ou fiscalizar tais fluxos, dificultando, assim, ainda
mais o combate à evasão fiscal.
Limitações administrativas
Finalmente, a terceira dimensão pela qual se esvaem recursos públicos é
aquela das limitações definidas na área administrativa. São construções
ideológicas, escondidas sob o manto da tecnicidade, que, por exemplo, definem
que as administrações tributárias devem ser eficientes e eficazes, acima de
tudo sobre os pequenos contribuintes, enquanto relevam ações mais contundentes
sobre os maiores. Os créditos tributários lançados enfrentam mil e uma
dificuldades para sua conversão em recursos recolhidos. As infindáveis
possibilidades de recursos administrativos e judiciais é um dos grandes
problemas: o contribuinte pode recorrer a diversas instâncias administrativas e
depois ainda discutir a causa na Justiça. Com isso, as cobranças arrastam-se
por mais de quinze anos. E, quando finalmente a dívida é cobrada, o devedor já
não tem mais patrimônio em seu nome ou o transferiu para algum paraíso fiscal,
o que no mercado é conhecido como “blindagem patrimonial”. Outra dificuldade é
a inimputabilidade penal pelo pagamento, o que significa que, caso o sonegador
seja autuado pelo fisco, ele pode pagar a dívida e então seu crime deixa de ser
crime. Aliás, não precisa nem pagar tudo, pode parcelar.
Conclusão
Os elementos apresentados aqui são apenas parte dos inúmeros mecanismos
legais, estruturais, culturais e jurídicos que não fazem outra coisa que não
colocar uma parcela significativa das riquezas a salvo de qualquer tributação,
desmentindo o clássico aforismo de Thomas Fuller, de que por mais alto que se
esteja, a lei sempre estará acima, como demonstra Cattani. A dificuldade de
cobrar tributos daqueles com maior capacidade contributiva ou a opção política
de não fazê-lo fragilizam a capacidade dos Estados de promover políticas
públicas voltadas para o bem comum, seja, de um lado, pela falta de recursos,
ou, de outro, pela necessidade de adotar a alternativa mais fácil de construir
e manter um sistema tributário altamente regressivo, baseado em tributos sobre
o consumo que, comprovadamente, retiram a maior parte dos recursos das classes
que mais necessitam, aumentando a desigualdade e a precarização das condições
de vida dos mais pobres e forçando a alocação dos gastos sociais muito mais
para ações compensatórias do que para promover acréscimo de bem-estar.
1 Fátima Gondim Farias e Marcelo
Lettieri Siqueira,“Bases tributárias brasileiras: penalizando os pobres e
beneficiando os rentistas”. In: A sociedade justa e seus inimigos, Tomo, Porto
Alegre, 2012.
2 Lei Complementar n. 101/2000, em seu art. 14, § 1o.
3 Ver: .
4 Nesse sentido, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), em julho de 2013, divulgou seu relatório de proposição de ações denominado “Action plan on base erosion and profit shifting” [Plano de ação sobre erosão na base e deslocamento de lucros]. Disponível em: . Ainda que o assunto seja complexo, as organizações sociais ligadas ao tema da justiça fiscal têm sérias críticas à limitação de sua abrangência.Setembro de 2013
2 Lei Complementar n. 101/2000, em seu art. 14, § 1o.
3 Ver: .
4 Nesse sentido, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), em julho de 2013, divulgou seu relatório de proposição de ações denominado “Action plan on base erosion and profit shifting” [Plano de ação sobre erosão na base e deslocamento de lucros]. Disponível em: . Ainda que o assunto seja complexo, as organizações sociais ligadas ao tema da justiça fiscal têm sérias críticas à limitação de sua abrangência.Setembro de 2013
Clair Maria
Hickmann – Auditora
fiscal da Receita Federal. Foi diretora de Estudos Técnicos do Unafisco
Sindical de agosto de 2001 a julho de 2003 e de agosto de 2005 a julho de 2007;
Dão Real dos Santos – Auditor
fiscal da Receita Federal; Marcelo
Ramos Oliveira – Membro do Instituto de Justiça Federal – Setembro de
2013