Nesse
contexto, não basta comprovar que a mídia é regulada nas democracias mais
avançadas do mundo; não basta propor que as normas e princípios constantes da
Constituição de 88 sejam o “terreno comum” para se negociar a regulação; não
basta mostrar que as mudanças tecnológicas exigem uma atualização da
legislação; não basta reiterar compromissos com a Constituição Federal nem com
a liberdade de expressão. Nada é suficiente.
Venício A. de Lima
Ao contrário do que vem ocorrendo nas democracias liberais nas últimas décadas, inclusive em países nossos vizinhos da América Latina, no Brasil permanece interditado o debate público sobre o papel central que a mídia ocupa no processo democrático e a imperiosa necessidade de que jornais, revistas, rádio, televisão e internet se submetam a políticas públicas regulatórias garantidoras da universalidade da liberdade de expressão.
Ao contrário do que vem ocorrendo nas democracias liberais nas últimas décadas, inclusive em países nossos vizinhos da América Latina, no Brasil permanece interditado o debate público sobre o papel central que a mídia ocupa no processo democrático e a imperiosa necessidade de que jornais, revistas, rádio, televisão e internet se submetam a políticas públicas regulatórias garantidoras da universalidade da liberdade de expressão.
A mídia brasileira não debate publicamente a si mesma.
É verdade que seminários e eventos dos mais variados têm sido promovidos
ou contam com o apoio ostensivo dos poucos grupos empresariais privados que
controlam a mídia. O tema recorrente tem sido a liberdade de expressão
equacionada, sem mais, com a liberdade da imprensa. Mesmo assim, esses
seminários e eventos não constituem debate público. Preocupados em garantir os
incríveis privilégios assimétricos que conquistaram historicamente e numa reafirmação
de sua recusa à negociação democrática, esses grupos debatem, escutam e
promovem apenas a sua própria voz. Perspectivas diferentes das suas não são
ouvidas e tem sido sistematicamente caracterizadas como autoritárias,
populistas e defensoras do controle e da censura estatal.
São vários os exemplos de recusa à negociação. Lembro três emblemáticos:
(1) o boicote da 1ª. Conferencia Nacional de Comunicação, realizada em
dezembro de 2009. Sob a alegação de controle autoritário da organização e da
pauta da Conferencia por parte do governo e da sociedade civil, os principais
empresários de mídia tentaram sabotar a Conferencia e satanizaram ela própria e
suas centenas de propostas como se constituíssem uma tentativa deliberada de
cercear a liberdade de expressão.
(2) o Código Brasileiro de Telecomunicações – lei básica de referência
para a radiodifusão – completa meio século em 2012. Apesar da revolução
tecnológica ocorrida nos últimos 50 anos, os que controlam o setor, não só se
apegam às mesmas posições de quando a lei foi discutida e votada no Congresso
Nacional no início da década de 60 do século passado, como se recusam a admitir
a necessidade de sua substituição e, até mesmo, de debater publicamente a
questão.
(3) depois de um longo e complicado processo de negociação na Assembleia
Nacional Constituinte, foram inseridos na Constituição Federal princípios e
normas para a comunicação social pendentes de legislação complementar.
Decorridos mais de 24 anos da promulgação da Constituição Cidadã, a maioria
desses princípios e normas continuam sem ser regulamentados em função da ação
direta e/ou indireta dos grupos de mídia. Desta forma, não são cumpridos e,
recentemente, alguns desses princípios e normas passaram a ser tratados como
“instrumentos de censura estatal” por parte desses grupos.
Construção e enquadramento
É importante registrar que não são somente os empresários que tem
interditado o debate público sobre a mídia. Sucessivos governos, salvo raras
exceções como a convocação da 1ª. Conferencia Nacional de Comunicação ao
término do segundo mandato do Presidente Lula, tem abdicado de suas
responsabilidades de promover o debate público. A proposta de um marco
regulatório para a mídia, inúmeras vezes anunciada, até o momento em que se
escreve esse Prefácio (outubro de 2012), não se materializou e não foi,
portanto, submetida a apreciação do Congresso Nacional.
O que de fato está em jogo quando se interdita o debate sobre a mídia?
Onde se situa a raiz de todas essas questões? Qual a liberdade de expressão que
tem sido defendida pelos grupos privados de mídia? Quais os conceitos e
princípios que precisam ser debatidos publicamente para que a maioria da
população se dê conta de que a liberdade de expressão é assunto de seu
interesse direto e tem interferência na sua vida cotidiana?
O excelente A Corrupção da Opinião Pública, dos professores
mineiros Juarez Guimarães e Ana Paola Amorim, constitui tentativa pioneira de
oferecer, mais do que respostas a essas questões, um roteiro atualizado e
didaticamente organizado do que de melhor tem sido produzido sobre o tema,
tanto no exterior quanto no Brasil.
Sua leitura, por outro lado, deixa clara a necessária tarefa – ainda por
ser desenvolvida – de se descrever o enfrentamento histórico entre defensores e
adversários da liberdade republicana no Brasil. A referência inicial deverá ser
o ano de 1808, quando tardiamente se instala aqui a Imprensa Régia e tem origem
o surgimento do que mais tarde viria a ser chamado de opinião publica.
De imediato, A Corrupção da Opinião Pública oferece ao
leitor(a) uma inédita referência teórica e conceitual para que o debate público
que ainda não foi feito possa finalmente ser instalado entre nós.
O leitor(a) desse livro compreenderá de maneira clara o porquê de, no
Brasil, liberdade e liberdade de expressão constituírem conceitos em disputa e,
ao mesmo tempo, princípios a ser defendidos em nome de uma democracia
republicana.
Os adversários da isegoria, ao interditarem o debate
público, conseguiram construir como significação dominante o entendimento de
que estaríamos diante de uma batalha entre liberdade (liberdade de expressão) e
censura do Estado (regulação).
Ademais, o vazio provocado pela ausência de propostas do governo e a
impotência histórica dos (não) atores da sociedade civil fazem com que o campo
de significações sobre o que de fato deveria estar em debate esteja hoje sob o
controle exatamente dos opositores históricos da universalização da liberdade
de expressão.
Na verdade, trata-se de velha e conhecida tática. Escolhe-se um
princípio sobre o qual existe amplo consenso e desloca-se para seu campo de
significação a questão em disputa. Como em política, apoiar uma posição
significa estar contra outra, é preciso identificar um adversário, no caso, os
inimigos da liberdade de expressão, por extensão, aqueles que querem a censura.
Torna-se necessário, portanto, que se convença a maioria da população de
que “alguém” é contra a liberdade. Como os grupos de mídia (ainda) têm o poder
de construir e “enquadrar” a agenda “pública”, eles apresentam a si mesmos como
os grandes defensores da liberdade e da liberdade de expressão, em particular.
Convite implícito
Nesse contexto, não basta comprovar que a mídia é regulada nas
democracias mais avançadas do mundo; não basta propor que as normas e
princípios constantes da Constituição de 88 sejam o “terreno comum” para se
negociar a regulação; não basta mostrar que as mudanças tecnológicas exigem uma
atualização da legislação; não basta reiterar compromissos com a Constituição
Federal nem com a liberdade de expressão. Nada é suficiente.
Ao usar como estratégia o bordão da ameaça constante de retorno à
censura e de que a liberdade de expressão está em risco, os adversários da isegoria transformam
a liberdade de expressão num fim em si mesmo e escamoteiam a realidade de que,
no Brasil, o debate público – na maioria das vezes – só ocorre quando pautado
pelos grupos privados de mídia e que, mesmo assim, uma imensa maioria da
população dele continua historicamente excluída.
Contribuir para a mudança desse quadro histórico, diante da importância
crítica que a liberdade republicana – democraticamente construída – assume nas
democracias contemporâneas, é a razão básica pela qual A Corrupção da
Opinião Pública foi escrito.
Esse objetivo terá sido alcançado na medida em que todos os atores
envolvidos finalmente aceitem o convite implícito para um debate público
democrático que se espera venha a acontecer no interesse coletivo. (Belo
Horizonte, outubro de 2012)
Venício A. de Lima – Jornalista e sociólogo, professor titular de Ciência Política e
Comunicação da UnB (aposentado), pesquisador do Centro de Estudos Republicanos
Brasileiros (Cerbras) da UFMG – 13.08.2013
Prefácio de "A corrupção da opinião pública –
Uma defesa republicana da liberdade de expressão", de Juarez Guimarães e Ana
Paola Amorim, 144 pp., Editora Boitempo, 2013; R$ 30; título e intertítulos do
OI
IN Observatório de Imprensa, ed. 759 – http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/o_debate_interditado