domingo, 2 de março de 2014

A violência usurpou a democracia


SIM, HÁ ALGO DE PODRE NA POLÍTICA BRASILEIRA, MAS ENGANAM-SE OS QUE PRESUMEM QUE A PODRIDÃO ESTEJA SÓ NO LEGISLATIVO OU QUE DE LÁ PROVENHA.

Wanderley Guilherme dos Santos
Há algo de podre na política brasileira. O discurso do ódio contaminou a cultura. A violência física que assusta não é mais condenável do que a degradação pela palavra. Introduzido durante os debates da Ação Penal 470, a televisão propagou Brasil a fora o escárnio como argumento, a salivação como prova irrefutável e a falta de compostura de alguns magistrados como aparte retórico. Surpreendente a cada dia, durante todo o segundo semestre de 2013, os indiscutíveis mestres do STF, solidamente preparados, transformavam-se em arengueiros pernósticos a vociferar vitupérios em latim, em alemão e em inglês. À língua portuguesa reservaram-se rebuscadas construções gramaticais com que degradavam de modo vil os réus em julgamento. O valor intrínseco das evidências, muita vezes nulo, era irrelevante para o altissonante juízo que os homens de capas fúnebres proferiam.
Foi negado aos acusados a preservação última da dignidade de pessoa, a mesma que foi concedida ao assassino de Tim Lopes, Elias Maluco, ao ser descoberto: “prende, mas não esculacha”. Com linguajar de estilo maneirista, as capas fúnebres do Supremo Tribunal Federal esculacharam quanto quiseram os réus da Ação Penal 470 perante uma audiência nacional, nela incluídos os “Elias Malucos” em liberdade. E continuam, buscando proibir que sejam depositários da solidariedade de cidadãos e cidadãs em pleno gozo de seus direitos civis e políticos. Não podendo oficialmente matá-los ou bani-los, apostam impor-lhes o ostracismo. É o discurso da vingança impotente movido a ódio.
O estímulo ao linguajar desabrido e ao julgamento apressado e irrecorrível encontrou na já virulenta blogosfera a ecologia apropriada para reprodução cancerosa. Com a ferramenta do anonimato e a indulgência prévia a qualquer desvario, o Caim em nós desabrochou com velocidade sônica. A filosófica vontade de morte, a definição humana de um ser para morte, revela-se menos conceitual e inocente na real inclinação para matar. A internet veicula milhares de assassinatos virtuais e de convocatórias à destruição. Sem não mais do que o subterfúgio de códigos primários, quando muito, ações predatórias são incentivadas a qualquer título. É total o descompasso entre avanço social e econômico do País e as toscas bandeiras eventualmente desfraldadas. Na internet ou nas manifestações selvagens até mesmo os partidos radicais perdem importância. Não são eles que se aproveitam da turba para propaganda e crítica ao governo, é a violência irracional que se serve deles como escudo e defesa ideológica.
As antigas irrupções de quebra-quebra, de confronto entre polícia e manifestantes, e até mesmo episódios de grande magnitude, como a destruição das barcas em Niterói, no século passado, não têm parentesco próximo com o vírus do ódio contemporâneo. Aquelas eram manifestações tópicas, de enredo conhecido e de duração previsível. Estas são projetos de vida e morte. Tempo mal empregado o debate sobre a responsabilidade partidária dos confrontos atuais. O novo é a capacidade de mobilização a-e-trans-partidária das convocações subliminarmente homicidas.
A agressão pela palavra é companheira da agressão à palavra, à linguagem. A amputação da língua portuguesa tem sido o resultado não antecipado da linguagem de Caim. São as frases, os verbos, as concordâncias as primeiras vítimas de todos os blocos de suposta vanguarda. Essas agressões são antigas, mas da blogosfera estão sendo trasladadas ao vocabulário jornalístico e da televisão. Não só os textos de colunistas, repórteres e comentadores trazem conteúdo hiperbolicamente crítico, mas o vocabulário que utilizam é vulgar e de cada vez mais miserável. Não mais m..., pqp, fdap ou c......o.
Agora, intelectuais e jornalistas se esmeram  por extenso na vulgaridade da frase e na crueza dos termos. É uma violência à palavra, ajudando a violência pela palavra, destruindo importante fonte de transmissão de cultura. Não se aprimora o aprendizado da língua portuguesa lendo os jornais, as revistas, seus colunistas e editoriais rasteiros. Tornaram-se tão decadentes quanto o ressentimento que difundem.  Nem se discorda mais, se ofende. A violência está usurpando a democracia.
Sim, há algo de podre na política brasileira, mas enganam-se os que presumem que a podridão esteja só no Legislativo ou que de lá provenha. Para essa há remendos que asseguram a sobrevivência democrática. Em putrefação está a cultura nacional pelo envenenamento de parte de suas fontes de elite: a cultura jurídica, o debate político e a cultura da informação. O péssimo é que, tal como os políticos costumam absolver seus pares, é mínima a probabilidade de que juízes ou professores ou jornalistas reconheçam a responsabilidade que lhes toca nessa podridão. São castas auto-imunes.  


Wandeley Guilherme dos Santos – Cientista Político – 15.02.2014





A nova era da violência



AUTORES INTELECTUAIS DOS ASSASSINATOS JÁ ACONTECIDOS E POR VIR SÃO OS WHITEBLOCS. DEVEM SER COMBATIDOS COM A MESMA VIRULÊNCIA COM QUE COMBATEM A DEMOCRACIA.


Wanderley Guilherme dos Santos
Professores universitários do Rio de Janeiro, de São Paulo e outras universidades falam do governo dos trabalhadores como se fosse o governo do ditador Médici, embora durante aquele período não abrissem o bico. Vetustos blogueiros, artistas sagrados como marqueteiros crônicos, jovens colunistas em busca da fama que o talento não assegura, políticos periféricos ao circuito essencial da democracia, teóricos sem obra conhecida e de gogó mafioso, estes são os mentores da violência pela violência, anárquica, mas não acéfala. Quem abençoa um suposto legítimo ódio visceral contra as instituições, expresso em lamentável, mas compreensível linguagem da violência, segundo estimam, busca seduzir literariamente os desavisados: a violência é a negação radical da linguagem. Mentores whiteblocks, igualmente infames.
A era da violência produziu a proliferação dos algozes e a democratização das vítimas. Antes, a era das máquinas trouxe a direta confrontação entre o capital e o trabalho, as manifestações de protesto dirigiam-se claramente aos capitalistas em demanda por segurança no serviço, salário, férias, descanso remunerado, regulamentação do trabalho de mulheres e crianças. Reclamos precisos e realizáveis. Politicamente exigiam o fim do voto censitário, o direito de voto das mulheres, o direito de organização, expressão e manifestação. Exigiam, em suma, inclusão econômica, social e política. 
Os mentores dos algozes possuíam nome e residência conhecida. Os executores eram igualmente identificáveis: as forças da repressão, fonte da violência acobertada pela legislação que tornava ilegais as associações sindicais, as passeatas, os boicotes e as greves. As vítimas estavam à vista de todos: operários, operárias, desempregados, além de cidadãos, escritores e jornalistas solidários com a causa dos miseráveis.
Não há por que falsificar a história e negar que, ao longo do tempo, sindicatos mais fortes e oligarquizados também exerceram repressão sobre organizações rivais, bem como convocatórias grevistas impostas pela coação de operários sobre seus iguais. A era das máquinas não distribuía a violência igualitariamente, mas algozes e vítimas possuíam identidade social clara.
A atual era da violência, patrocinada por ideólogos, jornalistas, blogueiros, ativistas (nova profissão a necessitar de emprego permanente), professores, artistas, em acréscimo aos descontentes hepáticos, testemunha a agregação de múltiplos grupelhos, partidos sem futuro e fascistas genéticos aos tradicionais estimuladores da violência, os proprietários do capital. São algozes anônimos, encapuzados, escondidos nos codinomes das redes sociais, na covardia das palavras de ordem transmitidas a meia boca, no farisaísmo das negaças melífluas.
Os whiteblocs disfarçam o salário e a segurança pessoal nas pregações ao amparo do direito de expressão e de organização. Intimidam com a difamação de que os críticos desejam a criminalização dos movimentos sociais. Para que não haja dúvida: sou a favor da criminalização e da repressão às manifestações criminosas, a saber, as que agridam pessoas, depredem propriedade, especialmente públicas, e convoquem a violência para a desmoralização das instituições democráticas representativas.
As vítimas foram, por assim dizer, democratizadas. Lojas são saqueadas, vidros de bancos estilhaçados, passantes, operários, classes médias, e mesmo empregados e subempregados que a má sorte disponha no caminho da turba são ameaçados e agredidos. A benevolência do respeito à voz das ruas é conivência. Essas ruas não falam, explodem rojões. Não há diálogo possível de qualquer secretaria para os movimentos sociais com tais agrupamentos porque estes não o desejam. E, quando um quer, dois brigam.
A era da violência é obscura. Não me convencem as teorias do trabalho precário porque não cobrem todo o fenômeno, também é pobre a hipótese de uma classe ascendente economicamente com aspirações em espiral (já sustentei esta hipótese), e, sobretudo, não dou um centavo pela teoria de que almejam inclusão social. Eles dizem e repetem à exaustão que não reclamam por inclusão alguma, denunciada por seus professores como rendição à cooptação corrupta.
Os autores intelectuais dos assassinatos já acontecidos e por acontecer são os whiteblocs. Têm que ser combatidos com a mesma virulência com que combatem a democracia. Não podem levar no grito.


Wandeley Guilherme dos Santos – Cientista político –13.02.2014
IN Carta Maior – http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/A-nova-era-da-violencia/4/30257