há um claro azedamento do
clima político, que não começou ontem. A criminalização do adversário político,
de lado a lado, misturando acusações de corrupção à discordância quanto a
opções de políticas públicas - como se fossem a mesma coisa - não é uma
completa novidade, mas vem recrudescendo. E o problema disso é o seguinte: se o
adversário é um criminoso, o próximo passo é defender sua proscrição do jogo.
Faz-se democracia assim?
Cláudio Gonçalves
Couto
Diversos eventos agitam a vida política nacional desde junho do ano
passado, quando tomaram as ruas manifestações de tipos diversos, portadoras de
reivindicações disparatadas, motivações desalinhadas e métodos diferentes. Os
últimos ingredientes desses movimentos heterogêneos não se resumem à primeira
vítima fatal produzida por manifestantes (já que outras antes houvera, causadas
por sequelas da ação da polícia ou por investidas de motoristas inconformados
com o bloqueio das ruas), nem ao lema chantagista do "Não vai ter
Copa" - seguido das ameaças diretas de violência contra as delegações
estrangeiras.
Há, na realidade, muito mais sinais no horizonte, dando conta de que
algo vai mal na conjunção do sistema político com a sociedade. A opção cada vez
mais desabrida por soluções violentas e fora da lei para problemas sociais e
políticos é defendida de viva voz, ora por militantes de esquerda, ora por
jornalistas de direita, e todo o tempo no âmbito da subopinião-pública que
fermenta na internet - nas redes sociais e blogs. Fossem apenas a apologia ao
justiçamento ou a ameaça verbal a esportistas e políticos, já teríamos razões
de sobra para nos preocuparmos. Todavia, há mais do que isto, pois
justiçamentos têm sido efetivados e a violência contra desafetos já acontece.
Por fim, há um claro azedamento do clima político, que não começou
ontem. A criminalização do adversário político, de lado a lado, misturando
acusações de corrupção à discordância quanto a opções de políticas públicas -
como se fossem a mesma coisa - não é uma completa novidade, mas vem
recrudescendo. E o problema disso é o seguinte: se o adversário é um criminoso,
o próximo passo é defender sua proscrição do jogo. Faz-se democracia assim?
O que, afinal, sucede?
O país, nos últimos 20 anos, experimentou um acelerado processo de
mudança. Primeiramente, foi o fim da hiperinflação, e a consequente redução da
pobreza. Tal processo se fez acompanhar do incremento de políticas sociais,
como educação e saúde - sem contudo aumentar de forma significativa sua
qualidade. Na sequência, veio a ampliação das políticas de transferência de
renda - seja diretamente, pelas políticas focalizadas (como o Bolsa Família),
seja indiretamente, pela redução do desemprego e pelo aumento do salário
mínimo. Com isto, adveio uma nova e mais pronunciada redução da pobreza, além
da queda da desigualdade.
Como já exaustivamente observado por estudiosos, milhões de brasileiros
ascenderam economicamente, aumentando a chamada "classe C", definida
por alguns como "classe média", mas melhor categorizada por Jessé
Souza, como uma classe de "batalhadores" - já que não dispõem de
alguns elementos distintivos da classe média, como o capital cultural e
reconhecimento como tal. Observou-se que tal ascensão social se deu via
consumo, de modo que em vez de "cidadãos" os emergentes seriam apenas
novos "consumidores". Na feliz imagem do então candidato a prefeito,
Fernando Haddad, "a qualidade de vida da porta para dentro melhorou, mas
não se reflete da porta para fora".
A ascensão pelo consumo, contudo, tem efeito desorganizador na ordem
tradicional da sociedade brasileira, tão calcada sobre a desigualdade. O acesso
a certos bens de consumo era, até pouco tempo atrás, signo de distinção social.
O acesso ao aeroporto, a certos shoppings e a certas marcas não estava
disponível para qualquer um. Apenas os originários das classes abastadas (e os
poucos que a elas adentravam), "gente bonita", logravam exibir sinais
de seu pertencimento a um estrato social distinguido. A chegada de "gente
diferenciada" a esses lugares, como resultado do recente progresso social
no país, gerou desordem - subvertendo o lema de nossa bandeira.
Surgiu daí um duplo ressentimento. Primeiramente, dos de cima (sobretudo
dos não tão de cima) que perderam a sua distinção baseada no consumo. Depois,
dos de baixo (sobretudo dos não tão de baixo) que, após ascenderem pelo
consumo, passaram a almejar também o reconhecimento que supostamente poderiam
lhes proporcionar as marcas da distinção (o mais das vezes "marcas"
mesmo, comerciais) mas têm a porta da sociedade distinguida batida em sua cara.
O exemplo eloquente do primeiro ressentimento foi a tão difundida
postagem no Facebook de uma professora universitária que debocha de um
passageiro - supostamente trajado de forma indevida para um aeroporto -
acompanhada por comentários de pares que lastimam a perda do
"glamour" de voar - talvez existente nas propagandas da Varig dos
anos setenta. Ao questionar "Aeroporto ou Rodoviária?", a acadêmica
indicou lugares aos quais deveriam pertencer pessoas de maneiras, trajes e
origens sociais diferentes. O problema é que a rodoviária incorporou-se ao
aeroporto. E lá se foi o glamour, ou seja, a distinção baseada no consumo. Isso
é particularmente doloroso para classes médias que nos últimos doze anos não
progrediram tanto quanto os que vieram de baixo.
O melhor exemplo do segundo ressentimento é o rolezinho nos shoppings
chiques, por jovens da periferia. Agora que têm acesso franqueado a roupas de
grife, por que também não frequentar os lugares de grife? E a porta lhes bateu
na cara, literalmente. Claro que há o problema do tumulto, com tanta gente
chegando ao mesmo tempo. Mas esse tumulto não pareceu ser problema na
inauguração da Apple Store no Rio, nem nas celebrações dos estudantes uspianos
no Shopping Eldorado. Tais incongruências alimentam o ressentimento.
A perda da distinção embaralha referências até então solidamente
estabelecidas. Tal embaralhamento, acompanhado pela frustração de uma
continuação da melhora, seja "da porta para fora", seja "da
porta para dentro", suscita ansiedades e alimenta a busca de soluções por
fora das vias institucionais do Estado - que, por sua vez, não conseguiram
acompanhar na mesma velocidade as mudanças sociais. E instituições estatais em
descompasso com o progresso social são uma fonte propícia à desordem e, logo, à
violência. Eis aí a chave do atual recrudescimento dos ânimos.
Cláudio
Gonçalves Couto
– Cientista político e profesor da FGV/SP –18.02.2014
In Valor Econômico – http://www.valor.com.br/politica/3433450/desordem-e-progresso