Por um programa nacional de
desencarceramento e de abertura do cárcere para a sociedade.
Mães de maio, Pastoral
Carcerária, Instituto Práxis e Margens Clínicas
Como se
sabe, o Brasil ostenta o nada honroso quarto lugar no ranking dos países com
maior população carcerária no mundo (atrás apenas de Estados Unidos, China e
Rússia), com mais de 550 mil pessoas presas. Entre 1992 e 2012, a
população carcerária brasileira saltou de 114 mil para aproximadamente 550 mil
pessoas presas: recrudescimento de 380% (DEPEN). No mesmo intervalo de tempo, a
população brasileira cresceu 30% (IBGE).
Conjuga-se
gravemente com esse processo de encarceramento em massa a degradação
do sistema prisional, consubstanciada na violação dos direitos mais básicos da
população carcerária: apenas 10% têm acesso a alguma forma de educação; somente
20% exercem atividade remunerada; o serviço de saúde é manifestamente frágil,
com quadro técnico exíguo e diversos casos de graves doenças e até de óbitos
oriundos de negligência; as unidades são superlotadas: o Brasil ostenta a maior
taxa de ocupação prisional (172%)[1] entre os países considerados
“emergentes”; torturas e maus-tratos campeiam, com a conivência dos órgãos responsáveis
por fiscalizar as unidades prisionais.
Ao caráter
massivo do encarceramento no Brasil soma-se o caráter seletivo do sistema
penal, expresso na discriminação de bens protegidos e de pessoas alvejadas: de
um lado, apesar das centenas de tipos penais constantes da legislação, cerca
de80% da população prisional está presa por crimes contra o patrimônio (e
congêneres) ou pequeno tráfico de drogas; de outro, apesar da multiplicidade
étnica e social da população brasileira, as pessoas submetidas ao sistema
prisional têm quase sempre a mesma cor e provêm da mesma classe sociale
territórios daquelas que, historicamente, estão às margens do processo
civilizatório brasileiro: são pessoas jovens, pobres, periféricas e pretas.
A
seletividade penal tem ainda outro viés, mais grave e violento:
a criminalização das mulheres. Apesar de o número de mulheres presas
corresponder a cerca de 8% do total da população carcerária, sabe-se
que, nos últimos dez anos, houve aumento de cerca de 260% de mulheres
presas contra aumento de aproximadamente 105% de homens presos.
O caráter
patriarcal do sistema penal revela traços extremamente cruéis e sintomáticos do
machismo elevado à máxima potência.
O
recrudescimento da população prisional feminina deriva da assunção por centenas
de milhares de mulheres pobres (quase sempre negras) de trabalhos precários e
perigosos na cadeia de comercialização de psicotrópicos, tornando-as principal
alvo da obtusa guerra às drogas, eis que mais expostas e vulneráveis.
Bom lembrar
que a maioria esmagadora das mulheres presas por tráfico de drogas é composta
por pequenas comerciantes ou mesmo por meras usuárias (fenômeno também
observado entre os homens) e que não são raros os casos de separação violenta e
ilegal dessas mulheres de seus filhos[2]. Também não são raros os casos de
mulheres que, presas durante a gravidez, ou perdem a criança por falta de
cuidados médicos, ou dão à luz algemadas!
É de se
mencionar, também, a penalização de mulheres familiares de pessoas presas. Nas
filas de visita, a revista vexatória perdura, vergonhosamente, como
prática estatal para penalizar e humilhar familiares, geralmente mulheres, que
viajam longas distâncias para visitar o ente querido preso, quando não são
dissuadidas pelos próprios presos de enfrentar essa prática abjeta.
O contato
com a realidade do sistema penal, como se percebe, traz a clareza de que há
evidente processo de criminalização patriarcal da maternidade e da
ocupação do espaço público por mulheres.
A todas
essas mazelas, adiciona-se ainda mais uma: a violação sistemática do direito
fundamental à presunção de inocência. Ninguém ignora que, juridicamente,
somente é culpada aquela pessoa que, acusada pelo cometimento de determinado
crime, teve direito a um processo justo e a todas as vias recursais até que a
condenação se torne definitiva. Na prática, todavia, prevalece a punição
antecipada, configurada na verdadeira farra das prisões cautelares: cerca
de 43% da população prisional brasileira ainda não tem condenação definitiva!
Em outros termos, quase metade da população prisional brasileira é
juridicamente inocente!
O quadro
apresentado sintetiza um pouco dos horrores do sistema prisional brasileiro,
mas é insuficiente para traduzir o que apenas o contato direto com a realidade
pode ensinar: cárcere não é lugar de gente.
O Supremo
Ministro, então presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Excelentíssimo
Sr. Cezar Peluso, já criticara em março de 2011 o sistema penitenciário do país
e chegou a comparar algumas prisões às "masmorras medievais".
"Isso é um crime do Estado contra o cidadão brasileiro", disse ele,
durante seminário de segurança pública promovido pela Faap (Fundação Armando
Alvares Penteado)[3]. O próprio atual Ministro da Justiça assumiu publicamente
isto, pouco tempo depois de assumir o posto que ainda ocupa: “Se fosse para
cumprir muitos anos em uma prisão nossa, eu preferiria morrer”, disse durante
um encontro com empresários paulistas, fazendo a mesma alusão ao caráter de
“terríveis masmorras medievais” das prisões brasileiras[4].
Em face do
nítido caráter seletivo, classista e racista do sistema penal, cumpre a um
Governo que se quer comprometido com as camadas populares, com as pessoas mais
humildes e exploradas desse país, envidar todos os esforços para reverter o
processo de encarceramento em massa e pôr freios ao sistema penal.
É
necessário, urgentemente, fechar as comportas do sistema penal e estancar as
“veias abertas” do sistema prisional brasileiro com a adoção de medidas
efetivas de desencarceramento, de abertura do cárcere para a sociedade e de
redução de danos enquanto houver prisões.
Nesse
sentido, para além das medidas apresentadas na “Agenda de Enfrentamento à
Violência nas Periferias Urbanas” atinentes, direta ou indiretamente, ao
sistema carcerário, impõe-se a construção de um robusto e
integrado programa nacional de desencarceramento, de abertura do cárcere
para a sociedade e de redução de danos, composto pelas seguintes diretrizes:
1
- Revogação do programa nacional de apoio ao sistema prisional
O cerne do
Programa Nacional de Apoio ao Sistema Prisional, lançado em meados do segundo
semestre de 2011, é o empenho de cerca de 1 bilhão e 100 milhões de reais para
a construção de novas unidades prisionais em todo o país, com duas metas
principais: “zerar o déficit de vagas feminino e reduzir o número de presos em
delegacias de polícia, transferindo para cadeias públicas”.
Tal
Programa, no entanto, é manifestamente equivocado. Ainda que atingidas as metas
do plano (construção de 42,5 mil novas vagas), sequer se supriria, por exemplo,
o déficit carcerário do Estado de São Paulo, de cerca de 90 mil vagas em 2012 e
que, a cada mês, tem o acréscimo, em média, de 10.000 pessoas inclusas (contra
cerca de 6.000 egressas).
A
superlotação não deriva da ausência de políticas para a construção de presídios
(nos últimos 20 anos, o Brasil saltou de 60 mil vagas para 306 mil vagas
prisionais), mas sim, bom iterar, das prisões abusivas, ilegais e
discriminatórias executadas contra as pessoas mais pobres desse país e do exagerado
investimento em políticas repressivas em detrimento de políticas sociais.
A construção
de presídios não apenas é inábil ao objetivo de aplacar a superlotação
carcerária, como também serve de fomento às prisões. De acordo com David
Ladipo, pesquisador do sistema prisional estadunidense, “quando as prisões
estão superlotadas, há maior pressão sobre os juízes para serem mais seletivos
na imposição de sentenças de encarceramento. Quando a capacidade das prisões
aumenta, parte dessa pressão diminui”[5].
O Governo
Federal deve imediatamente cessar qualquer política de construção de presídios
para priorizar políticas que, de fato, são aptas a equacionar os principais
problemas atinentes ao sistema carcerário.
O “Programa
Nacional de Apoio ao Sistema Prisional” é um erro e reclama urgente revogação,
sob pena de contribuir ainda mais para a expansão do sistema e da população
prisionais.
2
– Pacto Republicano para construção de plano plurianual de redução da
população prisional e dos Danos Causados pela Prisão
No lugar de
um programa com metas para a construção de presídios, propõe-se pacto
republicano entre os três poderes e entre os entes federativos para a construção
de metas voltadas à redução da população prisional e de suas
mazelas e à implementação de políticas de acolhimento social
de jovens e adultos egressos.
No que toca
à redução da população prisional e de suas mazelas, bom lembrar que
o Governo Federal conta com importante expediente para impulsionar a redução da
população prisional: o indulto. Trata-se de prerrogativa
constitucional atribuída à Presidência da República (conforme artigo 84, XII,
CR) que deve ser mais amplamente utilizada para enfrentar o encarceramento em
massa, a exemplo da corajosa proposta recentemente apresentada pelo Presidente
italiano para liberar 24 mil presos do também superlotado sistema prisional da
Itália[6].
É de extrema
importância, ademais, a inclusão do sistema prisional entre as prioridades nas
políticas de ampliação de oferta de vagas de ensino e de aumento do número de
médicos em locais carentes, considerando, inclusive, a chegada de profissionais
estrangeiros, no âmbito das políticas do Sistema Único de Saúde (SUS) e do
Programa “Mais Médicos”.
Com relação
à implementação de políticas de acolhimento social de jovens e adultos
egressos, sugere-se que a construção das metas seja guiada pelos seguintes
pontos elencados pela Pastoral Carcerária (anexo 1): 1) levantamento prévio e
detalhado da situação, das necessidades e das dificuldades encontradas pelos
egressos, bem como consultas democráticas e construção participativa de
políticas voltadas para essa população; 2) implementação de trabalho de
conscientização territorial e comunitário a fim de superar os efeitos danosos
causados pelo encarceramento; 3) integração dos diversos componentes
territoriais em rede; 4) programa integral de atenção aos egressos
individualizado, respeitando os distintos grupos sociais e com políticas
voltadas para as minorias; 5) respeitar as especificidades do atendimento das
mulheres egressas; 6) garantia de célere atendimento à pessoa egressa, de
preferência já no limiar de sua saída; 7) formação adequada das polícias e
outros agentes de segurança pública para que saibam como trabalhar com esta
população; e 8) produção permanente de dados e acompanhamento das políticas
implementadas.
Ainda no
âmbito da política para pessoas egressas, vale replicar importante apontamento
do documento da Pastoral Carcerária (anexo 1): “Trata-se de uma questão da
qual o Plano Juventude Viva, que busca reduzir os índices de vulnerabilidade e,
consequentemente, de mortalidade da população jovem e negra nas cidades
brasileiras não pode se furtar, já que a passagem pelo sistema prisional
aumenta a vulnerabilidade da pessoa e retira, ainda mais, sua dignidade e sua cidadania.”
O Plano
Plurianual de Redução da População Prisional e dos Danos Causados Pela Prisão aqui
proposto poderia ser pactuado e reajustado anualmente, observados o permanente
acompanhamento das políticas de atendimento às pessoas egressas e a realização
de visitas conjuntas a todas unidades prisionais do país, com a garantia ampla
participação da sociedade civil, a fim de detectar o cumprimento de suas
diretrizes, de promover a liberação de pessoas presas ilegalmente e de
identificar, apurar e sanar eventuais violações de direitos.
3 - Alterações legislativas para a máxima Limitação da aplicação de
prisões cautelares
Como já
afirmado, apesar de vigorar no Brasil o princípio constitucional da presunção
de inocência, cerca de 43% da população prisional ainda não tem condenação
definitiva. Os mutirões empolgados pelo CNJ têm demonstrado, reiteradamente, o
excessivo número de prisões ilegais e abusivas.
Nesse
contexto, é fundamental que o Governo se empenhe em articular, junto à sua base
aliada no Congresso Nacional, alterações legislativas que abarque, no mínimo:
a) a exclusão das hipóteses de decretação de prisão preventiva “como garantia
da ordem pública ou da ordem econômica”, “em face da extrema gravidade do fato”
e “diante da prática reiterada de crimes pelo mesmo autor” (as duas últimas
hipóteses são retrocessos inclusos no PLS 156/2009); b) a ampliação dos casos
em que a decretação da prisão preventiva é vedada; c) a redução do prazo máximo
da prisão preventiva prevista no anteprojeto de Código de Processo Penal que
tramita no Congresso Nacional – PLS 156/2009 (de acordo com o qual a prisão
preventiva poderá perdurar por até 720 dias).
4 – Contra a criminalização do Uso e Comércio de Drogas
No âmbito da
“Agenda de Enfrentamento à Violência nas Periferias Urbanas”, alega-se, na
defesa do programa “Crack é Possível Vencer”: Embora a violência urbana
não seja resultante exclusivamente do uso abusivo de drogas e de seu comércio,
ela esta intimamente relacionada com esta agenda.
A asserção é
parcialmente verdadeira. A violência urbana, na verdade, não está intimamente
ligada com o uso e o comércio de drogas, mas, mais precisamente, com a
criminalização do uso e do comércio de drogas.
De acordo
com Maria Lúcia Karam[7], a criminalização do comércio de drogas, longe de
inibi-lo, carreia à sociedade o “subproduto” da violência: seja para enfrentar
a repressão, seja para resolver conflitos de concorrência, os comerciantes de
drogas têm na violência o meio necessário para garantir seus negócios.
De outra
perspectiva, a política de “guerra às drogas” traz impactos imensos ao sistema
carcerário e é determinante na construção de carreiras criminais entre jovens
pobres das periferias.
O número de
pessoas presas por tráfico mais do que triplicou entre 2005 e 2011, passando de
31.520 para 115.287.
O modelo
atual (cujo marco legal é a Lei 11.343/2006), além de não atingir o objetivo de
evitar a utilização de entorpecentes, agrava o problema, eis que as pessoas
presas sob acusação de tráfico são, em regra, aquelas que estão na base da
hierarquia do comércio de entorpecentes: pessoas pobres (geralmente primárias),
residentes na periferia, que não raras vezes traficam para sustentar o próprio
vício.
Conforme já
apontado, a política de combate às drogas é ainda mais cruel quando se trata
das mulheres: mais do que a metade da população prisional feminina é
composta de mulheres acusadas por crime de tráfico de drogas.
Já passa do
tempo de romper com a deletéria guerra estadunidense contra as drogas (e, por
via oblíqua, contra os periféricos) e elevar o enfrentamento aos efeitos
nocivos do uso de entorpecentes ao patamar de política de saúde e de educação
públicas.
5 - Contração Máxima do Sistema Penal e Abertura para a Justiça
Horizontal
Para Luigi
Ferrajoli, Direito Penal mínimo é aquele “condicionado e limitado ao máximo” e
que “corresponde não apenas ao grau máximo de tutela das liberdades dos cidadãos
frente ao arbítrio punitivo, mas também a um ideal de racionalidade e de
certeza”[8].
Adotar o
parâmetro do Direito Penal mínimo denota, portanto, o estabelecimento de
caminhos os mais estreitos para o sistema penal, de tal modo que ele não
transborde as limitações constitucionais e legais cuja aplicação poderia lhe
emprestar alguma legitimidade.
Nesse
sentido, em vista da existência de dois anteprojetos de Código Penal em debate
nas duas Casas Legislativas e da necessidade de restringir a pena de prisão ao
menor número de casos possível, pleiteia-se empenho do Governo para a abolição
da pena de prisão: nos crimes de menor potencial ofensivo; nos crimes punidos
com detenção; nos crimes de ação penal de iniciativa privada; nos crimes de
perigo abstrato; e nos os crimes desprovidos de violência ou grave ameaça.
Faz-se
necessária, ademais, mudança na regra geral estampada no artigo 100, § 1º, do
Código Penal, pela qual, salvo disposição contrária (e são raras as disposições
contrárias), a ação penal é pública e incondicionada.
No tópico
relativo à “Justiça Comunitária” da “Agenda de Enfrentamento à Violência nas
Periferias Urbanas”, firma-se o objetivo de “estimular comunidades a construir
seus próprios caminhos para a realização da Justiça, de forma pacífica e
solidária”.
No entanto,
enquanto viger a regra geral do artigo 100, § 1º, do Código Penal, a vítima e
sua comunidade, no mais das vezes, terão sempre papéis irrelevantes na condução
do processo institucional de responsabilização. Quando muito, servirão de prova
testemunhal, cujas vontades e necessidades são desprezíveis no âmbito do
processo penal.
Com o fim de
minimamente descongestionar os espaços amplamente ocupados pelo sistema penal
vigente, convém alterar a redação do artigo 100, § 1º, do Código Penal para
inverter a regra geral: a ação penal passa a ser pública condicionada, salvo
disposição contrária. De modo que a pessoa lesada, sempre que se sentir
contemplada por outros meios de construção de justiça, poderá abdicar da
intervenção penal.
Raciocínio
homólogo vale para o sistema penal juvenil. Apesar de já contar com dispositivo
que tem aberto relativo espaço para a aplicação de práticas restaurativas
(artigo 126 do ECA e artigo 35 do Sistema Nacional de Atendimento
Socioeducativo), o procedimento depende da discricionariedade do Ministério
Público e nada tem de horizontal ou comunitário, vez que ainda
institucionalizado e, portanto, submetido ao peso e à verticalidade da
jurisdição. Melhor seria que os processos para a apuração de ato infracional
dependessem, igualmente, de expressa manifestação da pessoa lesada.
Assim,
facultada à pessoa lesada a decisão por representar ou não para a promoção da
ação penal ou infracional, possibilita-se a abertura de canais comunitários de
resolução consensual e não punitiva do conflito. Obviamente, caso seja
promovida a representação, a pessoa acusada, ora perante o poder-dever de punir
do Estado, deverá ser provida de todas as garantias fundamentais do devido
processo legal.
Ainda no
campo de possíveis alterações do Código Penal, é de se reforçar o repúdio às
atuais tentativas de tipificar o crime de terrorismo, tendencialmente
entornadas à criminalização dos movimentos sociais. Nesse sentido, reforçamos
integralmente o teor do Manifesto de repúdio às propostas de
tipificação do crime de Terrorismo, assinado por mais do que 130
organizações e movimentos sociais (anexo 2).
6 –Ampliação
das Garantias na LEP
A Lei de
Execução Penal, por sua vez, também reclama reforma, especialmente para
conformá-la à Constituição da República.
Nesse
sentido, alguns aspectos deveriam ser considerados: judicialização de todos os
procedimentos relativos ao cumprimento de pena; regulamentação da revista de
visitas, com vedação expressa às chamadas “revistas vexatórias”;
ampliação das hipóteses de aplicação de prisão domiciliar, tornando-a
instrumento de combate ao desrespeito aos direitos das pessoas presas;
revogação do regime disciplinar diferenciado; redução dos lapsos temporais;
exclusão do (arbitrário) requisito subjetivo (“bom comportamento carcerário”)
para a progressão de regime e para a concessão do livramento condicional;
fortalecimento do poder judicial de interdição de unidades prisionais; e
detalhamento da atribuição judicial (artigo 66, VII) para a apuração de
tortura, maus-tratos e outras graves violações a direitos fundamentais da
pessoa presa.
Necessário,
ademais, seja promovida alteração na LEP para garantir os direitos fundamentais
ao contraditório e à ampla defesa, conforme previsão do Eixo I, item 11, do
“Acordo de Cooperação para Melhoria do Sistema prisional”.
O PL
7977/2010, citado na “Agenda de Enfrentamento à Violência nas Periferias
Urbanas”, é importantíssimo, mas, a nosso ver, reclama alguns reparos, nos
termos das sugestões enviadas alhures e que ora reapresentamos (anexo 4).
7–Ainda no
âmbito da LEP: Abertura do cárcere e criação de mecanismos de controle popular
Atualmente,
o acesso ao cárcere é quase que circunscrito às atividades de assistência
religiosa e, de maneira completamente precária e instável, a atividades
acadêmicas e humanitárias, sempre dependentes da autorização do Poder
Executivo.
No artigo 4º
da Lei de Execução Penal, dispõe-se: “o Estado deverá recorrer à cooperação da
comunidade nas atividades de execução da pena e da medida de segurança”.
Interpretada
a partir dos fundamentos constitucionais e dos objetivos fundamentais inscritos
nos artigos 1º e 3º da Constituição da República, a expressão "cooperação
da comunidade" deve ser compreendida como abertura ao envolvimento da comunidade
na equação dos danos produzidos pelo conflito e pela pena, com a possibilidade
de restabelecer os laços da pessoa presa com a sua comunidade no decorrer do
cumprimento da pena de prisão.
Há dois
outros dispositivos contidos na LEP que também poderiam ser aplicados a fim de
promover a abertura do cárcere para a sociedade: 1) no artigo 23, VII, a
atribuição de "orientar e amparar, quando necessário, a família do preso,
do internado e da vítima", conferida ao serviço de assistência social, fornece
fundamentos suficientes para as equipes de serviço social se empenharem na
construção de espaços de encontro da pessoa presa com a pessoa ofendida; 2) no
artigo 64, I ,abre-se a possibilidade de o Conselho Nacional de Política
Criminal e Penitenciária (CNPCP) estabelecer marco normativo que regulamente e
amplie o acesso ao cárcere pela sociedade.
No entanto,
é fundamental encampar reformas na LEP conducentes à abertura crescente do
cárcere à sociedade, com a inclusão da assistência humanitária no rol do artigo
11 e a regulamentação de visitas ao cárcere pela sociedade.
Outra
importante medida a ser adotada nacionalmente é a obrigatoriedade da criação
de Ouvidorias Externas e Independentes, capitaneadas por membros
externos à carreira pública escolhidos no âmbito da Sociedade Civil. Apesar de
convencionada na Meta 3 do Plano Diretor do Sistema Penitenciário (2008), são
poucos os Estados que implementaram Ouvidorias Externas e Independentes do
Sistema Prisional.
8
- Vedação à privatização do sistema prisional
É intolerável,
absolutamente intolerável, qualquer espécie de delegação da gestão prisional à
iniciativa privada.
Em primeiro
lugar, porque é inconstitucional: de um lado, é indelegável a
função punitiva do Estado, eis que atada ao monopólio da força estruturante da
República e parte, portanto, dela.
Como bem
assinala José Luiz Quadros de Magalhães: “para privatizar o Estado e suas
funções essenciais privatizando, por exemplo, a execução penal, teríamos que
fazer uma nova Constituição”[9].
Por outro
lado, punição não é atividade econômica e nem seria admissível que o fosse. A
mercantilização da liberdade de pessoas fulmina, no limite, o fundamento
constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CR).
Para além da
inconstitucionalidade e da patente imoralidade expressa nas tentativas de
transformar prisões em negócios, fato é que, também do ponto de vista
administrativo, a privatização é uma péssima opção, salvo para
iniciativa privada, ávida por auferir altos dividendos com a pena alheia.
Ora, parece
de todo óbvio que a iniciativa privada não explorará o sistema prisional (ou
qualquer outro “ramo” que o Estado permita explorar) sem que lhe seja permitida
a extração de taxa de lucro, o que, ao que tudo indica, fará recrudescer os
custos com o aprisionamento.
No mesmo
sentido, é pedagógico o alerta de Antônio Carlos Prado, Editor Executivo da
Revista Isto É, em recentíssimo artigo publicado na própria
revista:
O que pode
então parecer, à primeira vista, uma solução para o caótico sistema
penitenciário brasileiro guarda armadilhas. Estudos feitos no Brasil apontam
que, com a privatização, cada preso custará mensalmente em média R$ 4 mil –
quantia que os governos terão de repassar às empresas. Nem no Principado de
Mônaco, onde se oferece champanhe no café da manhã (não é ironia, é isso
mesmo), um presidiário custa tanto. Será que o prisioneiro, aqui, já não está
sendo superfaturado? Se essa é a quantia necessária para mantê-lo, então como
explicar que o governo paulista tenha despendido apenas R$ 41 per capita ao
longo do último ano? Por que os gestores dos cofres públicos, tão econômicos na
questão prisional, tornam-se generosos quando entra em cena a iniciativa
privada?[10]
É patente
que, a despeito dos auspiciosos argumentos relativos às supostas “melhores técnicas
de gestão da iniciativa privada”, há um único interesse em jogo aos que
defendem a privatização (‘PPPs’ inclusas, sublinhe-se): o lucro de investidores
privados.
Basta
divisar os exemplos de outros países para não claudicar com relação à
incontornável inaptidão da iniciativa privada para tornar o sistema prisional
algo menos indecente do que ele é.
Tanto nos
EUA quanto na Inglaterra (conforme se evidencia na tese de doutorado de
Laurindo Minhoto[11]), os indicadores apontam para a manutenção, nas unidades
privadas, das mazelas que se prometia combater: fugas constantes, mortes
ocasionadas por negligência, denúncias de torturas e maus-tratos, rebeliões,
entre outras mazelas, foram e são registradas frequentemente nos presídios
privados estadunidenses e ingleses.
As pontuais
experiências de privatização no Brasil não são diferentes. Exemplo mais
conhecido vem do Estado do Paraná, cujo antigo Governador, hoje Senador da
República, Roberto Requião, delineia e critica categoricamente.
Em sessão no
Senado, ao rechaçar projeto de lei de privatização dos presídios, o Senador
afirmou que, quando assumiu o Governo do Paraná, em 2003, encontrou uma série
de presídios privatizados. Segundo ele: eram “presídios sui
generis, que exigiam quase um vestibular para admitir o preso. Era uma
espécie de Circuito Elizabeth Arden para presos extremamente prestigiados pela
estrutura. Só entravam lá condenados que pudessem frequentar a lista de
candidatos ao céu, ao panteão dos santos, e a remuneração que esses presos
recebiam era uma lição exemplar da ideia da mais-valia. É claro, o modelo não
deu certo, e o Estado, na minha administração, retomou esses presídios”.
Vale ainda
mencionar o insuspeito Paul Krugman, prêmio Nobel de economia e liberal nato,
que, em artigo escrito na Folha de São Paulo, motivado por uma série de
matérias publicadas no New York Times sobre o sistema prisional privatizado de
New Jersey, afirma:
“Os
operadores privados de penitenciárias só conseguem economizar dinheiro por meio
de reduções em quadros de funcionários e nos benefícios aos trabalhadores. As
penitenciárias privadas economizam dinheiro porque empregam menos guardas e
pagam menos a eles. E em seguida lemos histórias de horror sobre o que acontece
nas prisões.”[12]
Tem-se,
portanto, por inescapável a conclusão pela completa falta de razoabilidade (e
de constitucionalidade e moralidade também) em qualquer intento de privatizar o
sistema prisional, o que, longe de trazer soluções reais para o povo
aprisionado e seus familiares, traria, na realidade, um asqueroso assédio ao
Poder Legislativo em busca de mais penas, mais prisões e, portanto, mais
lucros.
A bem do
real interesse público, qualquer investimento em prisões deve repelir a
iniciativa privada, vinculando a liberação de verbas federais exclusivamente à
implementação de melhorias em unidades prisionais completamente estatais já
existentes.
9
– Prevenção e Combate à Tortura
Fruto da articulação
da sociedade civil organizada, a Lei 12.847/2013, que instituiu o Sistema
Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e criou o Comitê Nacional de
Prevenção e Combate à Tortura e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à
Tortura, ainda carece de implementação.
Em face da
ocorrência de torturas sistemáticas no sistema prisional, constatadas em
diversos relatórios (vide, por exemplo: CPI do Sistema Carcerário/2008,
Pastoral Carcerária/2010, Mutirão Carcerário do CNJ/2012, entre outros), é
urgente a implementação e o aparelhamento do Mecanismo de Prevenção à Tortura,
garantindo plenas independência e autonomia, com membros escolhidos entre e
pela sociedade civil, sem ingerência do Poder Público.
Para além do
Mecanismo de Prevenção à Tortura, cumpre estabelecer, como já anotado supra,
marco normativo para a especificação da atuação dos órgãos da Execução Penal
(em especial, o Juízo da Execução) na atribuição de apurar torturas,
maus-tratos e outras violações a direitos fundamentais.
Ademais, no
desiderato de combater incansavelmente a tortura, prática execrável que remonta
aos primórdios da invasão portuguesa ao Brasil, é elementar que se envide
esforços para a célere aprovação do Projeto de Lei 554/2011, citado na “Agenda
de Enfrentamento à Violência nas Periferias Urbanas”, que prevê a realização da
chamada “audiência de custódia”. A aprovação de referido projeto adequará a
legislação brasileira ao Pacto de São José de Costa Rica, com a imposição da
apresentação da pessoa presa ao Juízo competente em 24 horas. Cuida-se de
inovação apta não apenas a possibilitar o rápido acesso à Justiça, mas,
sobretudo, a coibir a prática de tortura.
10- Desmilitarização
das Polícias e do Sistema Prisional
Por
derradeiro, urge promover a desmilitarização definitiva das polícias e da
gestão prisional.
A lógica
militar é norteada pela política de guerra, na qual os pobres, quase sempre
pretos, quase sempre periféricos, são eleitos como inimigos e se transformam em
alvos exclusivos das miras e das algemas policiais.
Entulho
deixado pela ditadura civil-militar que ainda permeia nosso cotidiano, o
militarismo das polícias brasileiras é fator determinante para a alta taxa de
letalidade da nossa polícia e, igualmente, para o processo de encarceramento em
massa, a tal ponto que a própria ONU já recomendou ao Brasil que desmilitarize
suas polícias[13].
Sobre a
necessidade de promover a desmilitarização das polícias, Túlio Viana afirma:
“O
treinamento militarizado da polícia brasileira se reflete em seu número de
homicídios. A Polícia Militar de São Paulo mata quase nove vezes mais do que
todas as polícias dos EUA, que são formadas exclusivamente por civis. Segundo
levantamento do jornal Folha de S. Paulo divulgado em julho deste ano, “de 2006
a 2010, 2.262 pessoas foram mortas após supostos confrontos com PMs paulistas.
Nos EUA, no mesmo período, conforme dados do FBI, foram 1.963 ‘homicídios
justificados’, o equivalente às resistências seguidas de morte registradas no
estado de São Paulo”. Neste estado, são 5,51 mortos pela polícia a cada 100 mil
habitantes, enquanto o índice dos EUA é de 0,63 . Uma diferença bastante
significativa, mas que, obviamente, não pode ser explicada exclusivamente pela
militarização da nossa polícia. Não obstante outros fatores que precisam ser
levados em conta, é certo, porém, que o treinamento e a filosofia militar da PM
brasileira são responsáveis por boa parte desses homicídios”[14].
A
desconstrução do modelo de guerra intrínseco ao militarismo, que - com exceção
da previsão de polícias municipais - parece estar bem delineada na PEC
53/2013 (de autoria do Senador Lindbergh Farias), é fundamental para a
construção de política abrangente de redução do Estado Penal, na medida em que
tal modelo expressa elemento violento e autoritário de alta incidência nas
comunidades mais vulneráveis.
No mais, a
política de desmilitarização deve também se estender ao sistema prisional. É
imperativa “a erradicação da militarização da gestão, da vigilância interna e
de serviços penais, exceto os guarda externa e escolta, nos termos das regras
mínimas da ONU para o tratamento de reclusos” (conforme manifesto constante do
anexo 3), assim como devem ser rechaçadas as propostas de transformação da
carreira de agentes prisionais em “polícia penitenciária”, em clara distorção à
função de tutela (e não de repressão) dos quadros do sistema penitenciário.
Igualmente
rechaçáveis são as propostas que autorizam o porte de arma fora de serviço aos
agentes penitenciários federais e estaduais, em especial a contida no PL
6565/2013, enviada pela Presidenta da República ao Congresso Nacional, que
está, como a própria Presidência afirmou em vetos anteriores, “na contramão da
política nacional de combate à violência e em afronta ao Estatuto do
Desarmamento”.
Como bem
ponderado em nota pública da Pastoral Carcerária:
“É
fundamental que o porte de armas de fogo fique restrito às instituições com
mandato para atuar na Segurança Pública, instituições capazes de estabelecer
mecanismos adequados de controle e treinamento de seus agentes. Além disso, vale
esclarecer que a concessão de porte de armas aos agentes prisionais já é
possível, desde que comprovada sua efetiva necessidade e atendimento dos
requisitos previstos na lei (como atestado de capacidade técnica e
psicológica)”[15].
A Reversão
do Encarceramento em Massa como Eixo Condutor da Presente Proposta
O principal
eixo e, ao mesmo tempo, objeto do Programa ora proposto é, indubitavelmente, a
reversão do encarceramento em massa e, portanto, a redução gradativa e
substancial da população prisional do país.
Todas as
demais medidas não são exaustivas e compõem política ampla que tem, ao fim e ao
cabo, apenas dois objetivos: reduzir a população prisional e garantir às
pessoas presas e a seus familiares o mínimo de dignidade e de sociabilidade,
apesar do cárcere.
Por uma vida
sem grades; por grades menos Desumanas
Por um mundo
sem grades, por grades menos desumanas, afirmamos, de forma contundente, em
coro às companheiras e companheiros presentes no I Encontro Nacional dos
Conselhos da Comunidade[16]: NENHUMA VAGA A MAIS!
Espera-se
que, a partir da proposta ora apresentada, construa-se política sólida, sem
remendos, que seja apta a atacar na integralidade a grande chaga que representa
o sistema penal às massas de marginalizados e periféricos desse país.
Em respeito
à memória dos ao menos 111 que tombaram pelas mãos do Estado no denominado
Massacre do Carandiru, ocorrido no dia 2 de outubro de 1992, e de tantas
centenas de outras pessoas presas mortas pelos massacres cotidianos do cárcere,
somos irredutíveis na exigência de uma política integral de reversão do encarceramento
em massa e da degradação carcerária.
Mães de maio, Pastoral
Carcerária, Instituto Práxis e Margens Clínicas – 19.12.2013
IN Carta Capital – http://www.cartacapital.com.br/sociedade/agenda-para-a-politica-prisional-1057.html