Parece que as causas para a crise
ucraniana são mais complexas. Deve-se considerar, pelo menos, três fatores.
Em primeiro lugar, a incapacidade do governo Yanukovich de resolver os
problemas de transição para uma economia capitalista que o país enfrenta desde
sua independência, em 1991, e que foi agravado pelas promessas de ganhos
econômicos não cumpridas do período pós-revolução laranja de 2004. (...) A
segunda causa diz respeito à uma tendência em toda a Europa, a ascensão de
movimentos nacionalistas, com feições nazi-fascistas. Na Ucrânia essa tendência
se materializou no partido Svoboda, que alcançou em torno de 10% do apoio da
população nas últimas eleições parlamentares. (...) Por último, deve-se
ressaltar o papel da UE, que estimulou a população da Ucrânia a tomar as ruas
após o fracasso das negociações de adesão do país a um acordo de livre-comércio
com a Europa. Essa postura de ingerência externa da UE nos assuntos ucranianos,
explícitos nas inúmeras declarações de Durão Barroso, acendeu o pavio para a
explosão de uma bomba.
Fabiano Mielniczuk
As causas da crise
A situação
da Ucrânia é séria. Muitos falam do risco de uma guerra civil que leve à
divisão do país entre as áreas ocidentais e a parte leste, habitada por russos.
Esse risco agora é mais iminente, com a ocupação da Criméia por grupos
paramilitares pró-Russia e a realização de um plebiscito para que a população
decida se a região deseja ser anexada pela Rússia ou não.
Os analistas
que apóiam a aproximação da Ucrânia à UE afirmam que o pano de fundo para os
protestos que levaram ao Golpe que derrubou Yanokovich foi a situação econômica
do país. Com uma mentalidade dos anos 1990, reiteram que a única alternativa à
Ucrânia seria a de aprofundar os laços econômicos com a UE, liberalizando (ou
melhor, modernizando, no discurso oficial) sua economia e promovendo maior
interdependência com a Europa como forma de fugir das chantagens econômicas
russas. Entretanto, após o colapso econômico de 2009, quando a economia recuou
19% em razão da crise mundial de 2008, a Ucrânia tem tido níveis de crescimento
compatíveis com os dos demais países europeus. Por outro lado, parece pouco
provável que depois do vergonhoso resultado eleitoral de 2010, no qual o
candidato à reeleição e líder da Revolução Laranja, o pró-ocidental Victor
Yushenko, obteve aprox. 5% de votos no primeiro turno, a população da Ucrânia
fosse optar por uma ruptura institucional violenta que colocasse no poder
líderes que vêem o FMI como salvação para a economia do país (o mesmo FMI que
rompeu um acordo de empréstimo de 15 bilhões de dólares com a Ucrânia, em 2010,
após Yushenko aumentar o salário e as pensões dos ucranianos).
Parece que
as causas para a crise ucraniana são mais complexas. Deve-se considerar, pelo
menos, três fatores. Em primeiro lugar, a incapacidade do governo
Yanukovich de resolver os problemas de transição para uma economia capitalista
que o país enfrenta desde sua independência, em 1991, e que foi agravado pelas
promessas de ganhos econômicos não cumpridas do período pós-revolução laranja
de 2004. A falta de transparência na gestão do país e um ambiente corrupto para
os negócios também entram nesse cenário de problemas não resolvidos. A segunda
causa diz respeito à uma tendência em toda a Europa, a ascensão de movimentos
nacionalistas, com feições nazi-fascistas. Na Ucrânia essa tendência se
materializou no partido Svoboda, que alcançou em torno de 10% do apoio da
população nas últimas eleições parlamentares. Com um discurso baseado na
xenofobia e na pureza nacional, contra russos e contra judeus, os adeptos desse
partido fizeram parte de uma facção chamada “setor de direita”, que esteve na
vanguarda violenta dos movimentos na praça Euromaiden. Por último, deve-se
ressaltar o papel da UE, que estimulou a população da Ucrânia a tomar as ruas
após o fracasso das negociações de adesão do país a um acordo de livre-comércio
com a Europa. Essa postura de ingerência externa da UE nos assuntos ucranianos,
explícitos nas inúmeras declarações de Durão Barroso, acendeu o pavio para a
explosão de uma bomba.
EUA e UE x Rússia, e a Ucrânia no meio…
Depois de
ter acendido o pavio, a UE foi ingênua (ou cínica) ao negociar com opositores
que não tinham legitimidade frente aos extremistas. Durante as manifestações, a
extrema direita tomou conta da situação e passou a expulsar manifestantes
pacíficos dos prédios ocupados. A facção chamada “setor de direita” foi
fundamental para isso. Existem, inclusive, laços dos nacionalistas ucranianos
com grupos paramilitares que lutaram na Chechênia contra os russos, e a
confirmação de que muitos “manifestantes” são paramilitares treinados. Esses
grupos não tinham outro objetivo senão a derrubada do presidente.
Ademais, a
União Européia e os Estados Unidos agiram de maneira precipitada ao
reconhecerem um governo que derrubou um presidente democraticamente eleito e
que é formado, em boa parte, por esses extremistas. A justificativa para tal
posição se fundava na alegação de que o governo de Yanukovich havia sido
responsável pela morte dos manifestantes em Kiev. No dia 05 de Março, o
vazamento de uma gravação telefônica entre o Ministro das Relações Exteriores
da Estônia, Sr. Urmas Paet, e a chefe das Relações Exteriores da UE, Sra.
Catherine Asthon, deixa claro que os Europeus sabiam que o início dos tiros
feitos por snippers partiram de grupos relacionados às
milícias ultra-nacionalistas, os quais buscavam como alvo tanto as forças
policiais quanto os manifestantes. Esses mesmos grupos fazem parte do governo
provisório na Ucrânia. Isso reforça a alegação dos russos de que os acontecimentos
de Kiev foram protagonizados por grupos que ameaçam a segurança dos russos no
país e justificaria, portanto, a ocupação da Criméia. Em outras regiões da
Ucrânia com maioria russa, como Donetsk e Kharkiv, já ocorrem manifestações
populares pró-Rússia e, caso haja reação ucraniana, a possibilidade de uma
intervenção russa em outras partes do país bastante real.
Os europeus
e norte-americanos acusam os russos de serem incoerentes, de defenderem o
princípio da não-intervenção em outros casos e de o desrespeitarem no caso da
Ucrânia. Todavia, as comparações são qualitativamente desmedidas. Vejamos as
últimas três intervenções condenadas pelos russos e lideradas pelos ocidentais.
A primeira
foi baseada em mentiras – supostas ligações de Saddam com a Al Qaida e a
existência de armas de destruição em massa foram comprovadamente fabricadas por
setores do governo norte-americano para legitimar a invasão do Iraque, em 2003.
A segunda, na Líbia, decorreu de uma divergência na interpretação de uma
resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas que, segundo os russos,
não autorizava a intervenção, mas mesmo assim ela foi levada adiante. O próprio
fato de haver uma resolução com apoio da Rússia indica um certo grau de
cooperação entre as potências para a resolução da Crise na Líbia. Na visão dos
russos, sua boa vontade foi retribuída com traição por parte do Ocidente. Por
último, a intervenção da Síria não ocorreu por conta da oposição russa e da
proposição de um plano para a retirada das armas químicas do território sírio
(posteriormente, a justificativa utilizada pelo presidente Obama para que
houvesse uma intervenção armada, de que o governo de Bashar Al Assad havia
utilizado armas químicas contra os rebeldes, foi comprovada falsa por um estudo
de especialistas do MIT). De todo modo, nesses três casos, não existia um
número significativo de cidadãos, sejam europeus, sejam norte-americanos, que
estivessem em risco e pudessem justificar uma atitude belicosa contra um Estado
soberano. Por trás da defesa de valores universais que legitimassem
intervenções humanitárias, existiam também interesses econômicos bastante
palpáveis, relacionados a fontes de energia (petróleo e gás).
No caso da
Rússia, também existem interesses econômicos (gás) e geopolíticos (base de
Sevastopol) em jogo, mas os termos nos quais essas questões tinham sido
resolvidas nos últimos anos foram altamente favoráveis à Rússia, e não
serviriam de motivação para uma ação militar. Aqui, ao que parece, as
justificativas de intervenção humanitária não são vagas: existem quase 9
milhões de russos em território ucraniano, que viram sua língua ser rebaixada
do status de idioma oficial do país pelo parlamento do pós-golpe, e que temem a
presença de nacionalistas anti-russos no governo provisório. A atitude russa é
a materialização da promessa de que nenhum russo fora do território do seu país
depois do fim da URSS seria tratado como cidadão de segunda classe. De fato,
existiam em torno de 25 milhões de russos fora da Rússia depois do colapso da
União Soviética, e a maioria deles foram desprovidos de seus direitos básicos
(propriedade, idioma, emprego, voto, etc…) durante uma boa parte desse período.
Na época, a fraqueza do governo de Ieltsin e seu alinhamento incondicional com
o Ocidente impossibilitaram qualquer atitude proativa de Moscou para garantir
esses direitos. Embora tenha sido bastante lenta, a incorporação dos países do
leste na união Européia contribuiu para atenuar essa discriminação, mas não
para terminar definitivamente com ela. Pelo contrário, a UE aceitou a aberração
jurídica criada pela Letônia e Estônia de chamar os russos que viviam nesses
países desde a II Guerra Mundial de “não-cidadãos”, ou seja, pessoas que
possuem todos os direitos dos cidadãos, mas que não possuem direito de votar ou
de ocuparem cargos públicos (sim, esse é o status no passaporte dessas
pessoas). Por conta desse precedente, a UE não tem legitimidade para garantir o
respeito às minorias russas na Ucrânia, na visão da Rússia. Por esses motivos,
uma possível intervenção russa na Ucrânia não pode ser comparada às
intervenções ocidentais em outros países.
E agora, o que fazer?
Tendo em
vista o que foi exposto, a afirmação que Kissinger de que a demonização de
Putin por parte dos Estados Unidos serve, na verdade, como um álibi para a
inexistência de uma política externa para a Rússia está correta. De fato, os
interesses russos (e dos russos que habitam a Ucrânia) não foram levados em
consideração pelos ocidentais. Os russos reagiram de maneira previsível para
aqueles que acompanham a vida política do país e enxergam a Rússia como ela é.
Já aqueles que tendem a olhar para a Rússia e enxergar “o expansionismo da
antiga União Soviética,” paradoxalmente, não conseguiram vislumbrar que a
possibilidade de expansão da Rússia no caso da Ucrânia era real. Um primeiro
passo necessário para a resolução da crise, nesse sentido, seria o de colocar
em diálogo interlocutores ocidentais que saibam enxergar uma realidade
diferente e reconhecer que os interesses da Rússia são legítimos, bem como os
dos russos que vivem em território ucraniano.
Um segundo
passo seria o de negociar um governo de transição na Ucrânia, que não tenha a
participação de partidos vinculados aos atos de violência cometidos por
paramilitares armados e que desencadearam a resposta armada das forças de
policiais ucranianas. Para tanto, a UE deve reconhecer o erro de ter promovido
a versão de que a derrubada de Yanukovich foi legítima por se tratar de um
presidente que havia utilizado a força contra os manifestantes. Isso implicaria
a retirada do Svoboda do governo de transição (que, aliás, está a frente do
ministério de defesa) e o ingresso de alguns dos antigos governadores das
regiões russas do país no governo. Obviamente, essa medida deve ser seguida da
anulação da lei que retira do russo o status de segunda língua oficial do país.
O terceiro
passo é mais delicado, e consistiria em um acordo para adiar tanto o plebiscito
da região autônoma da Criméia, previsto para o dia 16 de Março, quando as
eleições para a presidência da Ucrânia, previstas para o dia 25 de maio. Caso
os russos da Criméia optem pela anexação à Rússia, será praticamente impossível
evitar a formalização da ocupação russa. Em contrapartida, esse evento levará
ao crescimento eleitoral do Svoboda na disputa presidencial. Nesse cenário, a
posterior anexação militar pela Rússia das outras regiões habitadas por russos
será concretizada, e a reação do governo nacionalista levará o pais à guerra
com a Rússia. Para evitar que isso ocorra, é necessário que haja tempo para que
os ânimos se acalmem e espaço para que os EUA, a UE e a Rússia tomem medidas
conjuntas para evitar o colapso econômico do país. Evidentemente, a imposição
de condições aos empréstimos feitos à Ucrânia, tais como a aceitação de
políticas econômicas preconizadas pelo FMI, não se aplicariam. Os recursos
poderiam vir de doações de Rússia, EUA e UE, e seriam administrados em comum
acordo até a situação do país se estabilizar.
Nesse
ínterim, um quarto passo consistiria em autorizar, via Conselho de Segurança, o
envio de Forças de Paz compostas por tropas majoritariamente russas, mas com a
participação menor da OTAN, para garantir a segurança da população russa no
país. Os moldes seriam os mesmos da KFOR, de atuação no Kosovo e que contou,
inicialmente, com participação russa. A administração dessa força estaria sob
responsabilidade do Conselho OTAN-Rússia, órgão dentro da OTAN que trata da
cooperação entre eles. Isso reativaria o órgão e evitaria que anos de
cooperação entre as partes fossem perdidos caso haja uma ruptura em sua
relação.
Embora não
sejam de fácil implementação, essas medidas podem oferecer uma alternativa
pacífica à resolução da crise, sem que a soberania territorial da Ucrânia seja
violada e sem que os russos que habitam o país sejam vítimas de práticas
discriminatórias. Além disso, o dialogo entre a Rússia e seus parceiros
Ocidentais seria mantido, e haveria tempo para que a situação da Ucrânia se
normalizasse e os elementos mais extremistas dessa crise perdessem o prestígio
adquirido junto a seus simpatizantes. Se medidas nessa direção não forem
adotadas, os problemas em breve serão bem mais complicados e, infelizmente,
apenas o diálogo não será suficiente para resolvê-los.
[1] Esse
trabalho foi escrito com base em entrevistas que tenho dado sobre os
acontecimentos recentes na Ucrânia e debates que tenho participado sobre o
assunto em programas de rádio e televisão. Caso haja interesse em fontes sobre
as afirmações desse artigo, favor encaminhar um email para: fpmiel@gmail.com
Fabiano Mielniczuk – Doutor em Relações Internacionais pelo IRI/PUC-Rio, Diretor da
Audiplo: Educação e Relações Internacionais, professor da Uniritter (Porto
Alegre) e pesquisador do Grupo de Pesquisa sobre Potências Médias (GPPM) –
09.03.2014
IN Blog do Grupo de pesquisa sobre potências médias – http://grupoemergentes.wordpress.com/2014/03/09/o-professor-e-pesquisador-fabiano-mielniczuk-analisa-a-crise-na-ucrania/