quarta-feira, 19 de março de 2014

Avanço coreano é visto como 'milagre'


Especialistas coreanos e brasileiros analisam receita de crescimento que fez o país nos últimos 60 anos se tornar o 9º exportador mundial.

Raquel Landim
As diferentes fases do Cheong-gye, um canal no centro de Seul, capital da Coreia do Sul, são um retrato fiel da revolução vivida pelo país nos últimos 60 anos. Os coreanos deixaram de ser um dos povos mais pobres do mundo depois de o país se tornar o nono maior exportador e o 12.º em poder aquisitivo.
Na década de 50, Cheonh-gye era uma favela ocupada por famílias que fugiam da guerra que dividiu a península coreana. Anos mais tarde, o córrego foi aterrado e deu lugar a uma autopista elevada, que se tornou um símbolo do progresso. Hoje, depois de uma restauração que consumiu US$ 900 milhões, o canal se transformou num aprazível parque para a população.
O Produto Interno Bruto (PIB) per capita da Coreia do Sul saltou de US$ 70 na década de 60 para mais de US$ 20 mil hoje. Para explicar o fenômeno e entender se a experiência pode ser repetida no Brasil, especialistas coreanos e brasileiros se reuniram na semana passada na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA), da Universidade de São Paulo (USP).
O crescimento coreano é considerado pelos especialistas como um milagre, já que se trata de um país praticamente sem recursos naturais (importa todo o petróleo que utiliza), com alta densidade populacional (20 vezes maior que a brasileira), apenas um quarto das terras agricultáveis (o restante são montanhas pedregosas), que sofreu várias ocupações ao longo de sua história e foi arrasado pela Guerra da Coreia (1950-53).
Para reverter a sorte, os governos coreanos usaram a receita desenvolvimentista completa: escolha de campeões nacionais, financiamento governamental, subsídios bilionários e protecionismo. "Política industrial significa intervenção do governo e seu objetivo é corrigir as falhas do mercado", diz Seung Won Jung, diretor do Banco de Desenvolvimento da Coreia do Sul no Brasil. "Mas é necessário dar subsídios aos candidatos certos, com metas e mecanismos para evitar que se acomodem."
Foram sete planos quinquenais de desenvolvimento entre 1962 e 1996. O governo interferia diretamente, escolhendo setores e fornecendo financiamento e incentivos fiscais, mas fixava metas de crescimento e de exportação. Boa parte dos incentivos fiscais, que permitiam deduzir do imposto de renda gastos com promoção de exportações e investimentos em máquinas, só desapareceu em 1995, quando o país entrou na Organização Mundial de Comércio.
Virada. A reviravolta coreana começou na década de 60, quando o país era uma ditadura, com uma agressiva política de promoção de exportações para bens de consumo leves e intensivos em mão de obra como o setor têxtil. Com a ajuda da desvalorização da moeda, os generais coreanos estabeleciam metas de exportação por empresa. Em reuniões mensais, o próprio presidente cobrava os empresários. Quem exportasse tudo o que havia prometido, recebia reconhecimento público.
Em 1973, o governo anunciou um plano para o desenvolvimento da indústria pesada e do setor químico, com foco em máquinas, navios, eletrônicos, petroquímica e metais não ferrosos. Foram criadas também as ferramentas de apoio: o Banco de Desenvolvimento da Coreia, o Fundo de Investimento Nacional e o Banco de Exportação e Importação da Coreia.
A estratégia deu resultados, com o surgimento de empresas conhecidas mundialmente como Samsung, LG, Daewoo e Hyundai. A participação da indústria nas exportações coreanas saiu de 27% em 1962 para impressionantes 89,1% em 1979. No PIB, a fatia da manufatura subiu de 14,4% para 24,3% no período. Mas também houve aspectos negativos: alta capacidade ociosa, inflação, deslocamento de recursos públicos para a especulação financeira.
Abertura. A partir de 1986, a política industrial coreana sofreu uma mudança importante. Em vez de eleger setores, o governo passou a apoiar atividades que beneficiam toda a economia como pesquisa e desenvolvimento, inovação, automação. O país foi gradativamente aberto às importações e ao investimento estrangeiro. Na década de 90, começa o período de "segyehwa", palavra coreana que significa abertura econômica e cultural e marca o início da internacionalização das empresas do país.
A crise asiática em 1997 pegou a Coreia ainda em um momento delicado. Grandes empresas quebraram, a moeda se desvalorizou e o país foi obrigado a firmar um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Em nome do bem-estar coletivo, toda a população coreana aceitou uma redução de 10% dos salários e grandes corporações realinharam operações e se submeteram as fiscalizações mais rígidas.
De acordo com a professora da Faculdades de Letras da USP, especialista em língua e cultura coreanas, Yun Jung Im, é relativamente fácil na Coreia do Sul conseguir o apoio popular para uma causa coletiva por causa da história do país, que é marcada por invasões, e das difíceis condições geográficas e de clima. "Existe um grande espírito de coletividade."
Hoje, a Coreia do Sul é um mercado aberto, que obedece às leis do comércio internacional, com multinacionais poderosas, um desenvolvimento focado em inovação e em crescimento "verde" através de energias renováveis. "As empresas coreanas hoje são tão grandes que o governo ficou pequeno e seu apoio não é mais fundamental", diz Gilmar Masiero, professor da FEA/USP e coordenador do Programa de Estudos Asiáticos.
Em um texto recente sobre o desenvolvimentismo na Ásia, José Luís Fiori, professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, afirma que a política industrial asiática, incluindo a coreana, esteve a serviço de uma grande estratégia social e nacional pela conquista ou reconquista de uma posição internacional autônoma e proeminente. "A estratégia econômica asiática não tem nada a ver com o chamado desenvolvimentismo latino-americano", escreve Fiori. Como todo milagre, a revolução coreana não é simples de copiar.


Raquel Landim – 20.08.2012