Para o cientista político Mark Blyth, a
contenção de gastos públicos é um modo de a elite ludibriar o povo.
Eduardo Graça
Professor de ciência política na Brown University,
Mark Blyth viu o seu livro mais recente, Austerity – The history of a
dangerous idea, ser elogiado por economistas de renome. Na perspectiva de
Blyth, as políticas de austeridade são, em última análise, um engodo moralista:
apoiam-se na falácia de os excessos consumistas anteriores à crise exigirem
agora um ato de penitência supostamente purificador. “O pecado exige
penitência”, ironiza.
CartaCapital – Em abril, o economista Dani Rodrik tuitou: “Acabei
de ler Austerity. Não é que foi preciso um cientista político para expor a
ilusão dos economistas?” Por que é tão difícil para os economistas do
mainstream concordarem com a premissa do perigo da austeridade?
Mark Blyth – A austeridade é uma ideia igualmente
sedutora, por três razões. A primeira é o senso comum. Se você tem uma vida
grande, pare de gastar e ela se reduzirá. A segunda é o aspecto moralista, ao
defender que o esbanjador pague pelos excessos. O pecado exige penitência. A
última é o preconceito com a ideia de o Estado poder gastar. Quando o setor
privado gasta, leem-se produção, investimento. Quando o estímulo se dá via
setor público, a tradução é invariavelmente desperdício. A ideia de o Estado
assumir o papel de investidor diante de uma iniciativa privada que gasta menos
é simplificada pela mensagem de que se está automaticamente trocando dinheiro
bom por ruim.
CC: Para o senhor, as três premissas estão erradas, não?
Mark Blyth – Sim. E exatamente por isso fazem da
austeridade uma ideia tão perigosa. Vamos começar pelo primeiro tópico: dívida
pública não é em nada parecida com a privada. Os Blyth, por exemplo, não
precisam importar gente, imigrantes, para o nosso núcleo familiar e taxar
seus descendentes por cinco gerações, enquanto criam papéis apostando contra
seus futuros pagamentos de imposto, os quais, por sua vez, poderão ser vendidos
em mercados secundários. Quando Estados dividem uma mesma moeda, como na
Comunidade Europeia, e decidem pagar as dívidas ao mesmo tempo, acabam por
reduzir a renda de todos os indivíduos. Com o colapso dos gastos e do consumo,
a dívida aumenta em relação ao PIB. Por isso, os países que investiram mais nas
medidas de austeridade fiscal, como Portugal e Espanha, se veem no paradoxo de
ter uma dívida maior do que aquela de antes dos pacotes de arrocho fiscal.
CC – Na Europa há a ideia de que quem não fez o seu dever de casa
precisa agora naturalmente pagar a conta do banquete.
Mark Blyth – A austeridade como lição de moral ignora o
fato de que é manifestamente impossível se endividar em excesso se não houver
também empréstimo em excesso. A razão pelas quais o endividamento dos 34 países
membros da Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico ter explodido
em 2008 foi o preço do resgate do setor financeiro global, dos bancos. Ou seja,
de quem emprestava dinheiro, não de quem se endividava. Os bens e a renda
daqueles que detinham a maioria dos bens e da renda nessas respectivas
economias foram salvos enquanto os custos da operação eram passados ao restante
da população, pagadora de impostos. A moral, neste caso, foi pervertida. A
história de os países do Norte da Europa terem feito o dever de casa é mal
contada. O que essas economias fizeram foi achatar os postos de emprego por uma
década e exportar cada vez mais, com a reciclagem dos excedentes com os países
do Sul transformados em crédito para se comprar mais bens produzidos no Norte.
CC – O senhor foi acusado de ser “neocomunista” ao afirmar que a austeridade
seduz as elites por oferecer justificativa ideológica para o grosso da
sociedade pagar pelos excessos dos mais ricos.
Mark Blyth – Não há nada de comunista em se detectar o
óbvio. O corte dos serviços públicos nada mais é do que a conta da debacle do
setor financeiro passada para o restante da população. A dívida privada
transformou-se em pública e a população paga até hoje pelos erros de quem
emprestou sem poder fazê-lo. Quem poderia absorver a pancada foi protegido,
enquanto quem não pôde pagar a própria conta passou a ter de arcar também com
as despesas do setor financeiro. É uma operação clássica de fraude econômica:
uma elite minúscula passou a perna no povo, algo como a clássica armadilha
comercial, uma isca é oferecida e espera-se que o cliente não perceba a
malandragem. Mas, agora, ela foi feita em larga escala, como jamais
anteriormente. A lógica é a mesma em relação ao argumento de que mais dívida
pública significa que os jovens pagarão pelos erros das gerações anteriores.
Basta pensar que se aos jovens fosse oferecida a opção de se pagarem mais
impostos no futuro como contrapartida para evitar a pobreza no presente (o
custo imposto pela austeridade), a grande maioria toparia o toma lá dá cá
sem pestanejar. Se há algo de comunista nessa história, ele foi aplicado
exclusivamente para os ricos. O grosso da população ficou com o capitalismo
mesmo.
CC – E a ideia de o Estado ser um péssimo investidor?
Mark Blyth – É igualmente falsa. E comprovada,
tragicamente, pelos acontecimentos no Sul da Europa, com multiplicadores
negativos agudos como cortes de 1 dólar de gasto público representando perda de
1,50 a 1,70 dólar de consumo final. Matematicamente, se há um negativo, é
preciso haver um positivo, ou seja, o contrário é igualmente e exatamente
verdadeiro. O setor público precisa, em tempos de crise, limitar o
multiplicador negativo. Cortes públicos aumentam a dívida, gastos a diminuem,
na medida em que não há colapso do crescimento econômico. O que é verdadeiro
para um indivíduo não o é para a economia.
CC – No Brasil, alguns economistas anunciam o fim do modelo de
crescimento baseado em estímulos públicos e programas sociais. E pregam a
austeridade como solução.
Mark Blyth – Estão terminantemente errados. A dívida
brasileira é relativamente pequena em relação ao PIB e tem caído. O Bolsa
Família, se pensarmos exclusivamente em termos de gastos públicos, é um
sucesso. A questão legítima a se perguntar, e me parece estar no centro das
exigências dos manifestantes, é por que políticos ditos de esquerda estão mais
preocupados com a construção de hotéis e estádios para a Copa do Mundo e as
Olimpíadas do que em investir na melhora dos serviços públicos? Serviços,
aliás, bancados pelos altos impostos pagos. O Brasil deveria ter resolvido
essas questões antes de embarcar em um furacão de gastos em construções a ser
usadas a conta-gotas depois de 2016. Mas não há saída para o Brasil: para
crescer mais o País precisa de um consumo doméstico ainda maior, mais do
que em investir na exportação de matéria-prima. O melhor caminho agora é
subsidiar o transporte e a educação para a população ter mais capital para o
consumo. Do ponto de vista econômico, estão certíssimos aqueles que saem às
ruas e exigem transporte público e educação mais baratos e de melhor qualidade.
Os economistas que defendem a austeridade e a diminuição dos gastos públicos no
Brasil estão errados.
(...)
Mark Blyth – Professor de Economia Política Internacional e no Watson Institute
(Universidade de Brown) – 01.08.2013
IN Carta Capital.
Mark Blyth: “A
austeridade pode levar-nos a uma morte lenta”
A austeridade é um pouco como o acidente
que nós agravAmos. Imagine que Portugal é alguém que foi
atropelado. Levamos a vítima ao hospital e decidimos que em vez de lhe
darmos analgésicos e colocarmos os ossos no sítio vamos antes deixar que perca
metade do sangue do seu corpo e vamos mantê-la bem toda a noite. Eis o que
fizemos: agravAmos a situação do paciente.
Esta semana, a Papel convidou Mark Blyth, Professor
de Economia Política Internacional e no Watson Institute (Universidade de
Brown). É autor de obras como «Great Transformations: Economic Ideas and
Institutional Change in the Twentieth Century» e, mais recentemente,
«Austerity: The History of a Dangerous Idea [Austeridade: a História de uma
Ideia Perigosa]» – que será lançado brevemente em língua portuguesa pela
Quetzal Editores. É também autor de diversos artigos científicos e estudos em
jornais e revistas como «The American Political Science Review», «Review of
International Political Economy», «Journal of Evolutionary Economics» e
«Foreign Affairs and Foreign Policy magazine».
Durante a entrevista, Mark Blyth contou-se que virá
a Portugal no final de Novembro para participar numa conferência relacionada
com o tema do seu último livro.
PAPEL – Na obra «Austerity: The History of a Dangerous Idea», poderia
qualquer ideia, boa ou má, ter um período de vida tão longo se não ocultasse
fortes interesses?
Mark Blyth – Em alguns casos esconde fortes
interesses. Simplesmente reflectindo sobre o fracasso europeu, não é uma
questão de Norte contra Sul. É credores contra devedores. E nós temos
esta espécie de “moral” difundida que diz que o Sul pediu demasiado dinheiro
emprestado e não contribui tanto como o Norte, produtivo, que tem de os
resgatar.No entanto, esta ideia ignora completamente factos como não ser
possível haver excesso de dinheiro tomado de empréstimo se não houver ninguém a
emprestar em demasia. E o que está por trás de toda esta crise do Euro? O
facto de quando o Euro chegou, os países do Norte, em particular a Alemanha,
tornaram-se muito competitivos porque as suas taxas de câmbio caíram. A
Alemanha vendeu bastante através das exportações mas não consumia o suficiente
ao nível interno. Estes excedentes são reciclados pelos sistemas bancários e
redundam nos mercados obrigacionistas do Sul e nos mercados de financiamento
privado denominados em euros. E depois vocês compram-lhes os bens, o que aumentam
os excedentes e garante o fluxo de capitais. Contudo, o que aconteceu em
2008, 2009 e 2010 foi o esgotamento do sistema por causa da crise financeira. E
assistimos agora a tentativas reimplementação do mesmo sistema? Certamente que
sim. Os credores querem o seu dinheiro de volta. E não pretendem ter
o haircut (perdão da dívida), como lhe chamam nos mercados
financeiros onde eles têm de assumir uma parte da responsabilidade por
emprestarem em excesso, bem como aqueles que contraíram dinheiro emprestado em
excesso numa altura em que eram encorajados a fazê-lo pelos
primeiros. Todavia, existe uma assimetria em jogo porque os credores
querem espremer os devedores para garantirem que os cortes se realizam da forma
mais ligeira possível. O problema em fazê-lo na zona Euro é que tudo o que
está a ser feito neste processo está a encolher o Produto Interno Bruto (PIB)
das economias dos países do Sul. Portanto, no fim, teremos mais dívida e
não menos, que é exactamente o que está a acontecer em cada economia resgatada. Todos
os países abrangidos por um programa de austeridade, cujo principal objectivo é
a redução da dívida pública, têm agora mais dívida do que quando começou o
programa.
PAPEL – Muitos países europeus estão a tentar (e a conseguir) reduzir o
nível de consumo interno e, como disse, os resultados não vão de encontro às
expectativas. Acredita que isto é uma espécie de erro resultante de ingenuidade
ou trata-se de uma campanha bem definida para fazer cumprir os padrões do
paradigma social liberal norte-americano?
Mark Blyth – Não acredito que seja uma campanha
orquestrada. Poderemos ter algumas pessoas que vejam este como o momento
ideal para destruirem o legado europeu gerado após a II Guerra.No entanto,
julgo que a questão é mais simples. Se olharmos para o PIB da zona Euro
este é de cerca de 15 triliões de euros e existem 3 vezes mais este valor em
activos bancários. E o sistema bancário europeu tem o dobro da alavancagem da
contraparte dos EUA. Ou seja, a Europa tem um sistema bancário repleto de
activos tóxicos, que são, em parte, compostos por dívidas soberanas, e que
equivale ao triplo da contraparte norte-americana e também ao dobro da
alavancagem. Em suma, eles construíram uma espécie de máquina apocalíptica
monetária. No sistema norte-americano, temos um banco central que imprime os
activos de reserva, pelo que podem fazer o que entenderem. Eles podem assumir
os activos tóxicos dos bancos, podem obrigá-los a recapitalizarem-se, podem
fazer tudo o que os bancos centrais fazem assumindo-se como financiador de último
recurso. Contudo, o Banco Central Europeu foi concebido para não ter estas
competências. A sua função principal é combater a inflação, mesmo durante
uma fase de deflação, ficando demonstrada a sua inutilidade. Portanto, quando a
crise atingiu aqueles que tinham em sua posse activos em euros, especialmente
dívida soberana, aperceberam-se que esta espécie de «metade banco central»
chamado BCE não os iria resgatar e havia a possibilidade de todos estes activos
poderem desvalorizar-se. Foi por isso que as yields subiram. E porque
as yields subiram, a razão para terem subido foi a dívida à banca, contra a
qual o BCE não conseguia proteger, enquanto no sistema americano, na dívida dos
EUA, o Banco Central resolveu esta questão. É por isso que as yields
dos EUA permaneceram baixas e as europeias subiram. Agora pergunto, o que
tem isto a ver com a necessidade de os Governos cortarem nos
orçamentos? Nada. E esta é a parte mais fascinante nesta
história. Tudo isto é um problema dos bancos. E não temos de começar a
pensar em neoliberais com inspirações maquiavélicas para abalarem o Estado
Social. Apenas precisamos de compreender os princípios básicos de como um
sistema bancário sobre-alavancado poderá tornar-se numa máquina apocalíptica
que nos conduzirá a este fim.
Mark Blyth – Professor de
Economia Política Internacional e no Watson Institute (Universidade de Brown).
É autor de obras como «Great Transformations: Economic Ideas and Institutional
Change in the Twentieth Century» e, mais recentemente, «Austerity: The History
of a Dangerous Idea [Austeridade: a História de uma Ideia Perigosa]» – que será
lançado brevemente em língua portuguesa pela Quetzal Editores. É também autor
de diversos artigos científicos e estudos em jornais e revistas como «The
American Political Science Review», «Review of International Political
Economy», «Journal of Evolutionary Economics» e «Foreign Affairs and Foreign
Policy magazine» – 08.08.2013
Alexandre Guerreiro – Jurista e Mestre em Direito. Autor do blog “Nem tudo
Freud explica…” mas também de um livro, artigos de opinião e conferências
relacionados com temas como Direito, Saúde e Desporto.
IN Revista Papel.