Mais do
que revelar um quadro de crenças confusas, a pesquisa aponta um quadro de
tolerância macabra com a violência contra as mulheres.
Katarina
Peixoto
A pesquisa do IPEA "Tolerância social à violência contra as
mulheres" revela um quadro macabro sobre a
disposição delinquente de abusar mulheres, no Brasil. Pesquisas baseadas em
sistema de indicadores de percepção têm por objeto um conjunto necessariamente
vago e confuso de crenças, desejos, conhecimentos mais ou menos refletidos e
quase nunca científicos; a percepção é um pântano, algo necessariamente
obscuro. Valem como uma fotografia borrada. Ainda assim, a pesquisa tem
questões muito claras e respostas, idem.
Para a maioria dos brasileiros, se usamos decote é
porque merecemos ser violadas. Para a maioria dos brasileiros, e isto é mais
grave, também devemos obedecer aos machos, dentro de casa. Como toda sociedade
é, por definição, entre outras possíveis, um balaio de crenças contraditórias e
calamitosas entre si, a maioria defende que o marido abusador deve ser punido.
A tolerância com o abuso é que se destaca: que tipo seria o caso, para merecer
a denúncia numa delegacia, já que a maior parte acha que os conflitos conjugais
devem ser resolvidos dentro de casa? Ora, dentro de casa, diz a mesma pesquisa,
quem manda é o homem. O corolário do convite ao estupro com base no decote é
trivial.
O problema do machismo é que ele é uma propriedade,
não um traço de caráter. Como propriedade, é uma característica cultural que
atravessa as classes, gêneros, idades, graus de instrução. O que define o
machismo é a crença segundo a qual os machos detém algum poder natural e,
portanto, legítimo, sobre as fêmeas e que, isto é o grave, este poder antecede
e vigora a despeito da lei. Se tomamos a definição elementar de fascismo como a
crença e a defesa normativa da força sobre a razão ou da força sobre a lei,
poderíamos tratar o machismo como um caso, uma variante privada e macabra, do
balaio irracional da violência fascista, isto é, das autorizações
auto-impetradas ao arbítrio.
Mas o problema do machismo é que ele é mais sutil;
é impregnado de afetividade (transmite-se sobretudo pelas famílias) e aí está o
poder de sua vigência. Isso explica, entre outras coisas, como pode haver uma
ordem democrática que elege uma mulher como presidenta e segue tratando o
aborto como crime. Assim, mais do que revelar um quadro de crenças confusas, a
pesquisa revela um quadro de tolerância macabra com a violência contra as
mulheres. O problema não é o decote; o problema é o poder: quem manda e deve
mandar é o macho.
(...)
Para continuar a leitura, acesse http://www.cartamaior.com.br/?%2FEditoria%2FPolitica%2FO-problema-nao-e-o-decote-e-o-poder%2F4%2F30599
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Katarina Peixoto – 29.03.2014
IN
Carta Maior.