segunda-feira, 13 de outubro de 2014

O engodo da austeridade


Para o cientista político Mark Blyth, a contenção de gastos públicos é um modo de a elite ludibriar o povo.

Eduardo Graça
Professor de ciência política na Brown University, Mark Blyth viu o seu livro mais recente, Austerity – The history of a dangerous idea, ser elogiado por economistas de renome. Na perspectiva de Blyth, as políticas de austeridade são, em última análise, um engodo moralista: apoiam-se na falácia de os excessos consumistas anteriores à crise exigirem agora um ato de penitência supostamente purificador. “O pecado exige penitência”, ironiza.

CartaCapital – Em abril, o economista Dani Rodrik tuitou: “Acabei de ler Austerity. Não é que foi preciso um cientista político para expor a ilusão dos economistas?” Por que é tão difícil para os economistas do mainstream concordarem com a premissa do perigo da austeridade?
Mark Blyth – A austeridade é uma ideia igualmente sedutora, por três razões. A primeira é o senso comum. Se você tem uma vida grande, pare de gastar e ela se reduzirá. A segunda é o aspecto moralista, ao defender que o esbanjador pague pelos excessos. O pecado exige penitência. A última é o preconceito com a ideia de o Estado poder gastar. Quando o setor privado gasta, leem-se produção, investimento. Quando o estímulo se dá via setor público, a tradução é invariavelmente desperdício. A ideia de o Estado assumir o papel de investidor diante de uma iniciativa privada que gasta menos é simplificada pela mensagem de que se está automaticamente trocando dinheiro bom por ruim.

CC: Para o senhor, as três premissas estão erradas, não?
Mark Blyth – Sim. E exatamente por isso fazem da austeridade uma ideia tão perigosa. Vamos começar pelo primeiro tópico: dívida pública não é em nada parecida com a privada. Os Blyth, por exemplo, não precisam importar gente, imigrantes, para o nosso núcleo familiar  e taxar seus descendentes por cinco gerações, enquanto criam papéis apostando contra seus futuros pagamentos de imposto, os quais, por sua vez, poderão ser vendidos em mercados secundários. Quando Estados dividem uma mesma moeda, como na Comunidade Europeia, e decidem pagar as dívidas ao mesmo tempo, acabam por reduzir a renda de todos os indivíduos. Com o colapso dos gastos e do consumo, a dívida aumenta em relação ao PIB. Por isso, os países que investiram mais nas medidas de austeridade fiscal, como Portugal e Espanha, se veem no paradoxo de ter uma dívida maior do que aquela de antes dos pacotes de arrocho fiscal.

CC – Na Europa há a ideia de que quem não fez o seu dever de casa precisa agora naturalmente pagar a conta do banquete.
Mark Blyth – A austeridade como lição de moral ignora o fato de que é manifestamente impossível se endividar em excesso se não houver também empréstimo em excesso. A razão pelas quais o endividamento dos 34 países membros da Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico ter explodido em 2008 foi o preço do resgate do setor financeiro global, dos bancos. Ou seja, de quem emprestava dinheiro, não de quem se endividava. Os bens e a renda daqueles que detinham a maioria dos bens e da renda nessas respectivas economias foram salvos enquanto os custos da operação eram passados ao restante da população, pagadora de impostos. A moral, neste caso, foi pervertida. A história de os países do Norte da Europa terem feito o dever de casa é mal contada. O que essas economias fizeram foi achatar os postos de emprego por uma década e exportar cada vez mais, com a reciclagem dos excedentes com os países do Sul transformados em crédito para se comprar mais bens produzidos no Norte.

CC – O senhor foi acusado de ser “neocomunista” ao afirmar que a austeridade seduz as elites por oferecer justificativa ideológica para o grosso da sociedade pagar pelos excessos dos mais ricos.
Mark Blyth – Não há nada de comunista em se detectar o óbvio. O corte dos serviços públicos nada mais é do que a conta da debacle do setor financeiro passada para o restante da população. A dívida privada transformou-se em pública e a população paga até hoje pelos erros de quem emprestou sem poder fazê-lo. Quem poderia absorver a pancada foi protegido, enquanto quem não pôde pagar a própria conta passou a ter de arcar também com as despesas do setor financeiro. É uma operação clássica de fraude econômica: uma elite minúscula passou a perna no povo, algo como a clássica armadilha comercial, uma isca é oferecida e espera-se que o cliente não perceba a malandragem. Mas, agora, ela foi feita em larga escala, como jamais anteriormente. A lógica é a mesma em relação ao argumento de que mais dívida pública significa que os jovens pagarão pelos erros das gerações anteriores. Basta pensar que se aos jovens fosse oferecida a opção de se pagarem mais impostos no futuro como contrapartida para evitar a pobreza no presente (o custo imposto pela austeridade), a grande maioria toparia o toma  lá dá cá sem pestanejar. Se há algo de comunista nessa história, ele foi aplicado exclusivamente para os ricos. O grosso da população ficou com o capitalismo mesmo.

CC – E a ideia de o Estado ser um péssimo investidor?
Mark Blyth – É igualmente falsa. E comprovada, tragicamente, pelos acontecimentos no Sul da Europa, com multiplicadores negativos agudos como cortes de 1 dólar de gasto público representando perda de 1,50 a 1,70 dólar de consumo final. Matematicamente, se há um negativo, é preciso haver um positivo, ou seja, o contrário é igualmente e exatamente verdadeiro. O setor público precisa, em tempos de crise, limitar o multiplicador negativo. Cortes públicos aumentam a dívida, gastos a diminuem, na medida em que não há colapso do crescimento econômico. O que é verdadeiro para um indivíduo não o é para a economia.

CC – No Brasil, alguns economistas anunciam o fim do modelo de crescimento baseado em estímulos públicos e programas sociais. E pregam a austeridade como solução.
Mark Blyth – Estão terminantemente errados. A dívida brasileira é relativamente pequena em relação ao PIB e tem caído. O Bolsa Família, se pensarmos exclusivamente em termos de gastos públicos, é um sucesso. A questão legítima a se perguntar, e me parece estar no centro das exigências dos manifestantes, é por que políticos ditos de esquerda estão mais preocupados com a construção de hotéis e estádios para a Copa do Mundo e as Olimpíadas do que em investir na melhora dos serviços públicos? Serviços, aliás, bancados pelos altos impostos pagos. O Brasil deveria ter resolvido essas questões antes de embarcar em um furacão de gastos em construções a ser usadas a conta-gotas depois de 2016. Mas não há saída para o Brasil: para crescer mais o País precisa de um consumo doméstico ainda maior, mais do que em investir na exportação de matéria-prima. O melhor caminho agora é subsidiar o transporte e a educação para a população ter mais capital para o consumo. Do ponto de vista econômico, estão certíssimos aqueles que saem às ruas e exigem transporte público e educação mais baratos e de melhor qualidade. Os economistas que defendem a austeridade e a diminuição dos gastos públicos no Brasil estão errados.

(...)





Mark Blyth Professor de Economia Política Internacional e no Watson Institute (Universidade de Brown) – 01.08.2013
IN Carta Capital. 


Mark Blyth: “A austeridade pode levar-nos a uma morte lenta”

A austeridade é um pouco como o acidente que nós agravAmos. Imagine que Portugal é alguém que foi atropelado. Levamos a vítima ao hospital e decidimos que em vez de lhe darmos analgésicos e colocarmos os ossos no sítio vamos antes deixar que perca metade do sangue do seu corpo e vamos mantê-la bem toda a noite. Eis o que fizemos: agravAmos a situação do paciente.

Esta semana, a Papel convidou Mark Blyth, Professor de Economia Política Internacional e no Watson Institute (Universidade de Brown). É autor de obras como «Great Transformations: Economic Ideas and Institutional Change in the Twentieth Century» e, mais recentemente, «Austerity: The History of a Dangerous Idea [Austeridade: a História de uma Ideia Perigosa]» – que será lançado brevemente em língua portuguesa pela Quetzal Editores. É também autor de diversos artigos científicos e estudos em jornais e revistas como «The American Political Science Review», «Review of International Political Economy», «Journal of Evolutionary Economics» e «Foreign Affairs and Foreign Policy magazine».
Durante a entrevista, Mark Blyth contou-se que virá a Portugal no final de Novembro para participar numa conferência relacionada com o tema do seu último livro.

PAPEL – Na obra «Austerity: The History of a Dangerous Idea», poderia qualquer ideia, boa ou má, ter um período de vida tão longo se não ocultasse fortes interesses?
Mark Blyth – Em alguns casos esconde fortes interesses. Simplesmente reflectindo sobre o fracasso europeu, não é uma questão de Norte contra Sul. É credores contra devedores. E nós temos esta espécie de “moral” difundida que diz que o Sul pediu demasiado dinheiro emprestado e não contribui tanto como o Norte, produtivo, que tem de os resgatar.No entanto, esta ideia ignora completamente factos como não ser possível haver excesso de dinheiro tomado de empréstimo se não houver ninguém a emprestar em demasia. E o que está por trás de toda esta crise do Euro? O facto de quando o Euro chegou, os países do Norte, em particular a Alemanha, tornaram-se muito competitivos porque as suas taxas de câmbio caíram. A Alemanha vendeu bastante através das exportações mas não consumia o suficiente ao nível interno. Estes excedentes são reciclados pelos sistemas bancários e redundam nos mercados obrigacionistas do Sul e nos mercados de financiamento privado denominados em euros. E depois vocês compram-lhes os bens, o que aumentam os excedentes e garante o fluxo de capitais. Contudo, o que aconteceu em 2008, 2009 e 2010 foi o esgotamento do sistema por causa da crise financeira. E assistimos agora a tentativas reimplementação do mesmo sistema? Certamente que sim. Os credores querem o seu dinheiro de volta. E não pretendem ter o haircut (perdão da dívida), como lhe chamam nos mercados financeiros onde eles têm de assumir uma parte da responsabilidade por emprestarem em excesso, bem como aqueles que contraíram dinheiro emprestado em excesso numa altura em que eram encorajados a fazê-lo pelos primeiros. Todavia, existe uma assimetria em jogo porque os credores querem espremer os devedores para garantirem que os cortes se realizam da forma mais ligeira possível. O problema em fazê-lo na zona Euro é que tudo o que está a ser feito neste processo está a encolher o Produto Interno Bruto (PIB) das economias dos países do Sul. Portanto, no fim, teremos mais dívida e não menos, que é exactamente o que está a acontecer em cada economia resgatada. Todos os países abrangidos por um programa de austeridade, cujo principal objectivo é a redução da dívida pública, têm agora mais dívida do que quando começou o programa.

PAPEL – Muitos países europeus estão a tentar (e a conseguir) reduzir o nível de consumo interno e, como disse, os resultados não vão de encontro às expectativas. Acredita que isto é uma espécie de erro resultante de ingenuidade ou trata-se de uma campanha bem definida para fazer cumprir os padrões do paradigma social liberal norte-americano?
Mark Blyth – Não acredito que seja uma campanha orquestrada. Poderemos ter algumas pessoas que vejam este como o momento ideal para destruirem o legado europeu gerado após a II Guerra.No entanto, julgo que a questão é mais simples. Se olharmos para o PIB da zona Euro este é de cerca de 15 triliões de euros e existem 3 vezes mais este valor em activos bancários. E o sistema bancário europeu tem o dobro da alavancagem da contraparte dos EUA. Ou seja, a Europa tem um sistema bancário repleto de activos tóxicos, que são, em parte, compostos por dívidas soberanas, e que equivale ao triplo da contraparte norte-americana e também ao dobro da alavancagem. Em suma, eles construíram uma espécie de máquina apocalíptica monetária. No sistema norte-americano, temos um banco central que imprime os activos de reserva, pelo que podem fazer o que entenderem. Eles podem assumir os activos tóxicos dos bancos, podem obrigá-los a recapitalizarem-se, podem fazer tudo o que os bancos centrais fazem assumindo-se como financiador de último recurso. Contudo, o Banco Central Europeu foi concebido para não ter estas competências. A sua função principal é combater a inflação, mesmo durante uma fase de deflação, ficando demonstrada a sua inutilidade. Portanto, quando a crise atingiu aqueles que tinham em sua posse activos em euros, especialmente dívida soberana, aperceberam-se que esta espécie de «metade banco central» chamado BCE não os iria resgatar e havia a possibilidade de todos estes activos poderem desvalorizar-se. Foi por isso que as yields subiram. E porque as yields subiram, a razão para terem subido foi a dívida à banca, contra a qual o BCE não conseguia proteger, enquanto no sistema americano, na dívida dos EUA, o Banco Central resolveu esta questão.  É por isso que as yields dos EUA permaneceram baixas e as europeias subiram. Agora pergunto, o que tem isto a ver com a necessidade de os Governos cortarem nos orçamentos? Nada. E esta é a parte mais fascinante nesta história. Tudo isto é um problema dos bancos. E não temos de começar a pensar em neoliberais com inspirações maquiavélicas para abalarem o Estado Social. Apenas precisamos de compreender os princípios básicos de como um sistema bancário sobre-alavancado poderá tornar-se numa máquina apocalíptica que nos conduzirá a este fim.

Mark Blyth Professor de Economia Política Internacional e no Watson Institute (Universidade de Brown). É autor de obras como «Great Transformations: Economic Ideas and Institutional Change in the Twentieth Century» e, mais recentemente, «Austerity: The History of a Dangerous Idea [Austeridade: a História de uma Ideia Perigosa]» – que será lançado brevemente em língua portuguesa pela Quetzal Editores. É também autor de diversos artigos científicos e estudos em jornais e revistas como «The American Political Science Review», «Review of International Political Economy», «Journal of Evolutionary Economics» e «Foreign Affairs and Foreign Policy magazine» – 08.08.2013
Alexandre Guerreiro – Jurista e Mestre em Direito. Autor do blog “Nem tudo Freud explica…” mas também de um livro, artigos de opinião e conferências relacionados com temas como Direito, Saúde e Desporto. 

IN Revista Papel.